23 de abril de 2005

Li e divido com vocês, sou fã do Miele.

Miele, o homem que já vestiu paletó de lantejoulas

O bêbado estava atrás de um ortopedista mas, zonzo de dor e cachaça, acabou entrando no escritório de advocacia.
- Então, qual o seu problema? - perguntou o advogado.
- Estou com uma dorzinha insistente no joelho esquerdo.
- Meu amigo, há um engano aqui. Meu negócio é direito.
- Caramba - chiou o bêbado - vai ser especialista assim no raio que o parta!
Me lembrei dessa piada velha enquanto, preso no trânsito infernal da São Clemente, vi o cartaz de Poeira de estrelas, livro do Miele, preso na traseira de um ônibus.
Miele nunca foi especialista em nada. Muito pelo contrário. Sempre jogou nas onze. Já foi cantor, humorista, diretor de shows, ator, dançarino, locutor, produtor de cinema. Fez de tudo. Nada muito bem. Agora escreve. Não deve escrever bem também. Por isso não compro seu livro. Miele - pelo menos nas minhas lembranças - sempre foi um chato. Nisso ele era bom. Chatear os outros. Um especialista em musicais chatos da Globo que entravam no ar na hora em que minha mãe me punha pra dormir. Onze e meia da noite. Hora do pijama e cama.
Eram musicais com escadaria, bailarinas com plumas na cabeça e sujeitos com paletós de lantejoulas. Miele era um deles. Meu Deus. O homem tem que ser firme para usar um paletó daqueles. Musicais que - eu imaginava - eram simples desculpa para que a Betty Faria e a Sandra Bréa mostrassem suas pernas. Na verdade, nem sei se Miele e Betty dividiram um mesmo musical. Acho que não. Sandra Bréa, sim. Sandra & Miele, com esse & cafona metido entre eles. Não importa. Miele sem as pernas da Betty era ainda pior. Era o fim. Cresci com essa impressão.
Mudou. Na verdade, mudei eu. O Miele, não. Continua chato, possivelmente. Mas eu ando mais tolerante com gente que quer fazer de tudo na vida. Não gosto dos especialistas. Simpatizo com quem vive para cantar, dançar, escrever, olhar as pernas da Betty Faria, ser amigo de um monte de gente, se ferrar um pouco, acumular histórias para contar.
O livro do Miele, que eu não comprei, deve ser assim. Um coquetel de música de boate, uísque, fumaça de cigarro, manhãs jogadas no lixo, coristas com as pernas de fora e um punhado de estrelas circulando em torno do seu umbigo: o resumo da vida que qualquer um gostaria de ter vivido. Eu gostaria.
Eu gostaria de, pelo menos um dia, ter tido a coragem de usar um paletó de lantejoulas. Mas fui subjugado à vida do pijama e cama. Uma especialidade, sem dúvida. Uma pena, também. O mundo dos especialistas é óbvio como o futebol da seleção do Parreira. Previsível. Miele não teria lugar nele. Não por ser um craque, mas por não ser especialista em nada.
O especialista, e Parreira é certamente um especialista em aborrecer o torcedor, normalmente vê a vida em segmentos. Defesa, meio campo e ataque. Roque Junior, Emerson e Ronaldo. Trabalho e casa. Mesmo no sexo é assim. Estudado e tedioso como um manual vendido em bancas de jornal. O beijo, depois os peitinhos, depois o resto. Pijama e cama.
Vida sem zona não tem lá muita graça. Ou não devia ter. O imprevisível - e deve ser por isso que Parreira teima em deixar o Robinho no banco - é mais ou menos como a visão do umbigo da Juliana Paes em Mais uma vez amor: faz a gente rever conceitos. Ou não existiria a paixão. Nem o dever de improvisar. Defender atacando. Trabalhar bebendo. Criar os filhos e ser criado por eles. Gostar de cinema e teatro, litoral e serra, Sandra Bréa e Betty Faria. Amor e sexo.
Beijar no mesmo momento em que se toca naquele buraquinho formado entre o osso da bacia e o início da virilha da namorada da gente. Um especialista poderá nos dar o nome técnico, anatômico, do buraquinho. Mas jamais saberá para que serve.
Miele deve saber.

Renato Lemos escreve no Jornal do Brasil

Um comentário:

spersivo disse...

O Renato escreve que é uma maravilha. Porém o Miele merece ser lido. Tudo bem: não é um gênio. No entanto, pelo menos exteriormente, aparenta ser o tipo que dá inveja na gente. É (era) imenso, com uma capacidade de rir e fazer rir. Se é um chato não sei dizer, mas sempre deixou a impressão de um carregador de piano, um desses meias que nunca será um Gersón ou um Zito, porém faz falta numa grande equipe. De qualquer forma, Luiz, gostei muito da crônica que tem, aliás, um ar de Miele: não chega a ser genial: É muito boa com instantes em que nos faz rir. Palmas para o Renato, o Miele e ainda mais faz para você que botou na rua seu Blog que está uma beleza.