7 de junho de 2005

O MALANDRO QUE NÃO APOSENTOU A NAVALHA

José Geraldo Pereira Baião*

Há exatos cinco anos, a música popular brasileira perdia um de seus maiores mitos – Antônio Moreira da Silva, o lendário Kid Morengueira, o criador do samba de breque e o responsável maior pela imortalização da figura do malandro em nosso imaginário popular.
Antônio Moreira da Silva (01.04.1902-06.06.2000) foi o cantor do antigo e saudoso malandro carioca: um sujeito elegante, bem vestido com seu terno de linho S-120, seu chapéu-panamá, seus sapatos de duas cores e seu indefectível anel de doutor. Um malandro cheio de ginga, malícia e esperteza, habilidoso com sua infalível navalha (a quem dispensava o maior zelo e carinho, chegando até a dar-lhe nome de mulher). Um malandro que só recorria à violência física em último caso, pois suas principais armas eram a inteligência, a esperteza, o papo ladino, a lábia. Seu ofício era ludibriar e passar a perna nos “otários”, a quem chamava desdenhosamente de Barburinos. Era um malandro que tirava o seu nas mesas de sinuca, no carteado, no jogo de tampinhas, nos contos-do-vigário e na alcovitagem. Enfim, um malandro que já não existe mais, destronado que foi, entre outros fatores, pela proliferação do crime organizado, com seus traficantes profissionais, violentos e fortemente armados, incapazes de inspirar quem quer que seja.
A profissionalização do crime organizado varreu do mapa os malandros tradicionais, que, ao contrário dos milionários traficantes de hoje, levavam uma vida modesta e quase sempre apertada, uma vez que o que faturavam em suas empreitadas era consumido com mulheres, bebidas, jogos e, claro, com a manutenção da impecável vestimenta. Os antigos malandros encarnados por Kid Morengueira não tinham a pretensão de formar um poder paralelo ao Estado, não pensavam construir um império fortemente armado e muito menos afrontar os poderes constituídos. Não formavam gangues, quadrilhas ou facções, pois o malandro de Moreira da Silva era, antes e acima de tudo, um personalista.
O velho malandro contentava-se com seus pequenos golpes e seus gaiatos contos-do-vigário. Não enfrentava a sociedade, não a via como um empecilho à sua atividade cotidiana. Muito pelo contrário, integrava-se a ela e, nessa relação com o social, buscava sempre levar vantagem em tudo. Aliás, o antigo malandro foi um dos precursores da afamada “Lei de Gérson”, aquela segundo a qual o importante é “levar vantagem em tudo”. Levar vantagem em tudo sempre foi a filosofia de todo malandro que se prezasse (hoje, infelizmente, a “Lei de Gérson” tornou-se filosofia da maioria dos nossos homens públicos). O antigo malandro acabou, e com ele se foi o seu mundo: as antigas gafieiras, os cassinos, as rodas de samba, enfim, todos os encantos do também saudoso Rio antigo.
O malandro de Morengueira impunha sua individualidade, seu personalismo, aspirava a ser cosmopolita (tinha aspiração de “conhecer a Europa toda, até Paris”). Era um sujeito poliglota, que rasgava frases em francês, inglês e italiano; considerava-se, enfim, um nobre (quem sabe um “Marquês Morengueira de Visconde”) e estava decidido: iria mudar o nome da patroa para Madame Pompadour. Tratava-se de um malandro que, sobretudo, valorizava a auto-estima.
Não foi Morengueira, porém, quem introduziu a figura do malandro na nossa música popular. Antes dele outros sambistas já cantavam a malandragem, como Noel Rosa, por exemplo. Mas foi Moreira da Silva quem consolidou a presença do clássico malandro no imaginário popular, principalmente a partir dos anos 50, com o advento dos bolachões de vinil (LPs), que estampavam a figura do impecável malandro em suas capas. Moreira conferiu a esse malandro uma aura mística e o cantou durante toda a sua carreira artística. Não satisfeito em apenas cantar a malandragem, o músico Moreira da Silva travestiu-se num personagem – o Kid Morengueira –, ajudando, assim, a fixar ainda mais a figura do malandro – esse personagem tão característico da cultura brasileira e, em especial, do Rio antigo.
Moreira da Silva – o Kid Morengueira – não deixou substitutos. Seu samba de breque (aquele das famosas paradinhas e dos hilários comentários improvisados feitos à parte pelo cantor) foi único e exclusivo. Mas seu estilo influenciou alguns grandes músicos brasileiros, como Jorge Veiga, João Nogueira, Nei Lopes, Chico Buarque e Jards Macalé (seu grande parceiro no “Projeto Pixinguinha”, nos anos 70), entre outros.
Nestes tempos de escassa originalidade em nossa música popular, a lembrança do impagável Kid Morengueira nos deixa ainda mais saudosos dessa grande figura.

* Mestre em Lingüística pela Universidade de Brasília (UnB).