26 de janeiro de 2010

Paranóias Urbanas

Por Marli Gonçalves

Vivemos com medo, muito medo de tudo. Uma insegurança imobilizadora e desgastante. Para onde quer que a gente olhe há perigo. Bons tempos aqueles em que preocupação era só saber se estávamos agasalhados, ou se tínhamos deixado a janela aberta.

A chuva aperta e mentalmente já começo a querer contar meus pintinhos, como chamo as pessoinhas que amo. Quero saber onde estão - se bem, na toca, seguros. Fico imaginando como se viram e o que passam as mães e os pais zelosos, quem têm família grande e dispersa. Haja remédio para ansiedade, haja terapia. O que é pior é perceber que nossos piores pesadelos podem se concretizar a qualquer instante. Há um número sem fim de ameaças. Sobreviver na selva é pouco. Quero ver sobreviver na cidade.


Você sai para dar uma volta. Uma chuva forte pode submergi-lo se estiver de carro; e se estiver a pé pode cair numa galeria destampada pelos ladrões de tampas e de serviços públicos. Dentro do ônibus pode ficar detido, encharcado, em desgraça literalmente coletiva. A árvore desgastada pelos cupins pode resolver ruir exatamente ali, porque desgraça não marca hora. O vento pode derrubar o que quiser: cartaz, muro, poste, janela, casa, criança, velho. O solo pode sumir de seus pés e/ou rodas. Se ficar parado numa dessas, pode vir o vento dos arrastões, principalmente se estiver em uma área Porto Príncipe da Vida, que aqui temos muitas, não precisa estar longe. Guerras momentâneas, guerras instantâneas, guerrilhas e levantes sempre à espreita de oportunidade. Qualquer tremor, qualquer barulho de estouro dá taquicardia. Pode ser tiro. Pode ser bomba.


Cadê a estrada que estava aqui, a ponte que partiu? Por que o mar está tão nervoso?


Não choveu? Que bom. Não deixe de passar o protetor solar porque os raios UVA e UVB estão com forte incidência e você pode, digamos, machucar sua pele, pegar coisa ruim. Beba bastante água, e que seja filtrada ou mineral, para não pegar nem virose, nem bactéria, nem diarréia, nem desidratação. Se entrar no mar, ou na piscina, lave-se depois. Sempre com a boca fechada, para não entrar mosquito nem outras coisas. E agradeça a Deus por ter água.


Como dizíamos, pensávamos em dar uma volta. Vamos? Vá por aquela rua mais movimentada e só tome cuidado para não ser atropelado por nada ao atravessar. Pode vir carro, moto, bicicleta, skate, rolimã, pombos, gente deseducada. Melhor não cortar o caminho: lembra daquele cachorro que vive lá e que outro dia quase te atacou? Soube que mordeu um poodleoutro dia. Ah, e naquela outra rua essa hora eles estão descarregando caminhões - não dá para passar. E se não está chovendo, o ar está seco e a poluição corta sua garganta, seca seus olhos. Cuidado para não tropeçar. Nas calçadas agora tem bancas, bancos, caçambas, blocos de cimento, camelôs, exposições da arte de nos atazanar, e artesanatos. Nas áreas de ruas chiques, colide-se com plaquinhas de orientação bem patrocinadas e mal sinalizadas. Parar o carro? Vagas? Não. Só pontos de táxis, e muitos; a profissão cresce. E muitos guarda-sóis e plaquetas de manobristas particulares que te encaram. Não, não pode parar aqui não senhora.


Não faz muitos anos e o pesadelo de quem andava nas ruas eram os moleques que puxavam cordões de ouro dos pescoços disponíveis. Para comer, não para fumar. Era mais um medo urbano, que foi virando paranóia, um desenvolvimento, um medo de precaução, maluco, torturante e angustiante que cresceu e virou a paranóia e a realidade que vivemos hoje. Cruz Credo, acabamos pensando só em desgraças! Balas perdidas, briga de torcidas, alguém que não vá com nossa cara ou com nossos costumes ou com nossa roupa ou nossos cabelos. Dar de cara com um bando de perdidos numa noite suja. Se for rico, pode ser sequestrado. Se for pobre, confundido. Ou isso. Também.


A correntinha que arrancaram do pescoço, dois tombos feios em buracos dos passeios - não houve quem pudesse ajudar - fizeram minha mãe simplesmente parar de sair. Foi um pulo para a depressão e o agravamento da doença que a levou. Meu pai, agora obrigado por mim a andar todos os dias, soube resolver melhor: só sai com a bengalinha na mão que usa para brandir impropérios por causa dos buracos, pacotes de lixos, dos obstáculos que tem de vencer, e atravessar na porta do supermercado, numa virada de rua que precisava da instalação de uma zebra inteira. Saí com ele outro dia e vi. Ninguém deixa o idoso passar. E lá vai a bengalinha do meu bugre veio em ação. Ele fecha a cara - que já não é a mais aberta - e vai em frente. Descobri que anda se divertindo.


Tudo bem. Não é para menos, que a situação está grossa. Seguranças matam os que deviam ser segurados. Polícia e bandidos se mesclam ou se enfrentam. Educação é produto em falta. Gentileza, então, nem se fale. Conviver com irregularidades e ilegalidades virou praxe - até por conta de que tantas leis só servem para serem descumpridas. Como já disse, descaso gera descaso. E ninguém cuida do que não conhece, percebe, gosta.


Não tenho solução a propor, infelizmente. Só queria chamar a atenção para esse tema. Sei que quem foi para a praia esse ano teve de ficar trancando portas e janelas. Teve que manter a paranóia do medo. Até por não saber se conseguiria chegar lá, ou de lá voltar para a cidade, se ainda tem estrada. Não dá para tirar férias do medo. Não dá para pedir licença. Não dá para fugir - para onde?


Isso tudo está acontecendo tão perto da gente! É tão visível, tão real. Simples como vai transbordar a água que não corre pelo esgoto entupido pelo lixo jogado; água que só corre pelo chão coberto de cimento, emborrachado, com poros fechados. A terra vai ruir porque não pode ter gente ali. Não pode construir lá, porque vai cair aqui. E a água vem, derrete lá de cima enquanto os conferencistas debatem, com ar condicionado e muita emissão de carbono. Aí plantam umas árvores, contam pra todo mundo. Papagaiada. Está quente, muito quente, insuportavelmente quente, um quente diferente. Está frio, muito frio, insuportavelmente frio, um frio diferente. Chove, chove muito, mais que normalmente. Venta, e a terra treme, os oceanos flutuam. Mais do que antigamente, bem diferente.


Vamos nos dar as mãos, respirar fundo e nos acalmar. Para ver se surge alguma ideia de como poderemos suportar tanta pressão. E tantos medos e paranóias. E veja que eu não estou falando de política.

São Paulo, Brasil, Haiti, Venezuela, Londres, Tibete, Amsterdam...



Marli Gonçalves, jornalista. Tem um kit de sobrevivência básico junto de si, sempre carregando alguma coisa. A gente sai para ir ali e pode precisar demorar a voltar. Então é bom ficar esperto. No meu kit tem lupa, lanterninha, remédios gerais, cinzeiro, documentos, fogo, maquiagem básica de primeiros socorros, ferramentas para necessidades e prazeres gerais, chaves de outras casas, caneta e caderninho. Fora os eletrônicos, claro.

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