11 de agosto de 2010

As mil e uma caras da Rua do Riachuelo

Corredor histórico mais movimentado da renovada Lapa, é palco de paradoxos




As cifras estilizadas da fachada do Business Flat, o número 54, pairam lado a lado com as janelas sem esquadrias, das quais pululam varais descarnados e odores dos mais diversos. No condomínio de nome estrangeiro, o aluguel de um apartamento mobiliado, com direito a serviço de quarto e área de lazer, custa, em média, R$ 2 mil mensais; do outro lado da parede, na construção reduzida ao esqueleto — uma “ocupação”, como é conhecida no bairro — dezenas de famílias de sem-teto improvisam cômodos com compensados. Na calçada, entrecruzam-se filetes de esgoto sem tratamento.

Os dois edifícios, geminados, refletem os paradoxos que habitam a Rua do Riachuelo. Ex-Caminho da Bica, ex-Rua de Mata-Cavalos, a via que carrega mais de três séculos de História é o eixo central da recente renovação pela qual passa a Lapa e adjacências. São quase dois quilômetros de um logradouro sinuoso, que costura o Centro do Rio de Janeiro ao relevo de Santa Teresa. Imortalizada na prosa do maior escritor brasileiro, cenário por onde passaram diferentes personagens históricos, a Riachuelo é hoje palco de burburinho ininterrupto.

Começa no Largo da Lapa — sua extremidade mais badalada — e termina na Rua Frei Caneca — ponto marcado pela decadência. Neste percurso, mescla o antigo ao novíssimo. Seu panorama arquitetônico é como um jogo de colagens: nesgas de art decó, nesgas de neoclassicismo. Painéis de azulejos portugueses lado a lado com fachadas envidraçadas. Empreendimentos imobiliários recém-erguidos fazendo sombra a casarões centenários.

Da moda às ervas


“A Rua do Riachuelo tem acolhido cada vez mais as luzes da Lapa”, define o geógrafo João Baptista Ferreira de Mello, da Uerj, que coordena o projeto “Roteiros Geográficos do Rio”. “É uma rua tradicional numa parte periférica do Centro, e agora está vivendo uma metamorfose.”

Dentro desta metamorfose, os recém chegados points da moda convivem lado a lado com cenas de antigamente. Inaugurado há dois anos no número 101, o ateliê O Sobrado é um exemplo do primeiro caso. A portinhola de metal, tão acanhada, não dá nenhuma pinta do que se encontra lá dentro: um espaço charmoso que abriga as criações de cinco jovens marcas. No rol de produtos em exibição no showroom (é preciso marcar hora para as visitas), há bolsas (da Orange) e vestidos estilosos (da Balacobaco), objetos de arte (da Objeto A) e acepipes de pâtisserie (da Fazendo Doce). Além disso, O Sobrado também é onde nascem os projetos de dança assinados pela Companhia Arquitetura do Movimento. As designers Renata Gobert e Anita Bastos, da Objeto A, explicam como a criação do ateliê foi amparada pela revitalização da Lapa: “A ideia foi aproximar nossas empresas do conceito de entretenimento e de arte que marca essa rua”. Tanto que, no primeiro sábado de cada mês, o casarão sedia um evento que mescla moda, música e gastronomia.

Alguns metros adiante, no trecho em frente à Av. Nossa Senhora de Fátima, a gaúcha Olinda Mariano dos Passos oferece, desde 1971, as ervas terapêuticas e culinárias que compra na Cadeg. Cominho, fumo de rolo, pimenta do reino e colorau são os campões de venda. “Aos sábados, chego a vender dois quilos e meio”, comemora a ambulante. “Queria ter capital para colocar mais variedade.” Logo ao lado, uma série de mercadorias para lá de peculiares é exposta no chão: fitas VHS, conchas, abajur, raquete, aparelhos de telefone e até um vidro usado de Hipoglos. Objetos que, aparentemente sem utilidade, têm lá seu público consumidor. “Arrecado cerca de R$ 20 por dia”, conta o vendedor, que prefere não se identificar.

Entre o santo e o mundano
Além do comércio herbóreo e de quinquilharias, outras atividades do passado rondam a Rua do Riachuelo. É o caso da União Beneficente dos Choferes. Desde a década de 60, é um dos grupos a ocupar o número 373, prédio inaugurado por Juscelino Kubitschek, como gostam de dizer seus funcionários. Apesar da obsolescência da categoria “choferes”, a União ainda se mantém com a contribuição de sócios antigos e a pecha de ser, às vésperas de completar 100 anos, a mais antiga associação de motoristas do Rio de Janeiro. Na oratória plantada no centro do edifício, um São Cristóvão moldado em Portugal abençoa a classe.

A Riachuelo, afinal, é uma rua de fé. A Igreja de Nossa Senhora de Fátima, construção gótica no número 367, é tradicional reduto de fiéis portugueses. Deu nome ao bairro de Fátima, e arrasta uma pequena multidão na festa de 13 de maio. No outro extremo do logradouro, a Capela Menino Jesus, um singelo prédio cor de rosa, também oferece missas semanais, enquanto testemunha o aumento da concorrência de público: logo em frente, a Igreja Evangélica da Lapa surge espremida entre uma galeteria e um estacionamento 24 horas.

Adiante, uma Igreja Universal do Reino de Deus compõe uma estranha vizinhança com o Clube dos Democráticos e a Gafieira Lapa 40º, palcos de atividades mais mundanas.

Os dois espaços, aliás, compõem o eclético panorama de diversão noturna do logradouro, outro setor no qual o antigo e o novo se misturam de forma peculiar. No trecho mais próximo aos Arcos da Lapa, a miscelânia musical e de estilos pulula em espaços recentes, como o Rio Rock e Blues, casa onde predomina o pop rock, ou no próprio Lapa 40º, que há dois anos registra filas na porta de seus shows de MPB ou samba. O espaço de quatro andares ganhou até grife, além de uma filial em Búzios.

Enquanto isso, ainda resistem cenários que denotam a decadente boemia que deu fama ao bairro. Como a Sinuca de Bico, salão que ocupa o segundo andar do 260. Lá, o público de perfil variado desfruta cervejas de garrafa entre uma tacada e outra. Ao fundo, um cubículo esconde um disputadíssimo videoquê de repertório brega.

Soho ou Augusta?

Com tantas — e tão diversificadas — opções de entretenimento, a Riachuelo tem sido chamada de Rua Augusta carioca. Estimulado pelo lazer abundante, o boom imobiliário rende outra comparação para o logradouro: há quem diga que é o nosso Soho. Prova disso é o sucesso do empreendimento Cores da Lapa, que em 2005 deixou o universo imobiliário boquiaberto ao vender 668 apartamentos em apenas duas horas.

A caça a um imóvel vago, que há pouco era exacerbada no trecho mais lapeano da rua, agora já tem seus reflexos no extremo mais próximo à Rua Frei Caneca — área no qual os prédios residenciais são entremeados por oficinas, lojas de material de construção, serralherias e botequins.

“Quase todo dia aparece alguém perguntando se há apartamento vago”, conta Paulo Jesus Silva, porteiro do Edifício Antonioni, uma construção de traços modernistas que abriga 60 apartamentos de um, dois ou três quartos. Os moradores são, em sua grande maioria, aposentados. Mas os aspirantes atuais têm perfil eclético, explica o funcionário.

Além das opções de entretenimento, outro atrativo da rua é a gama de serviços que tem se multiplicado nos últimos anos. Grandes marcas como a Casa&Vídeo e O Boticário se instalaram por lá há pouco tempo, fazendo vizinhança aos supermercados Sendas e Mundial. Nas fachadas, aqui e acolá, brotam marcas famosas: Citycol, Casa Show, Pello Menos. No último mês, o curso de idiomas Yes abriu uma franquia no número 161, de olho no aumento de jovens na região.

Preciosidades

Misturado a tantas logomarcas reconhecidas, o comércio miúdo ainda pulsa por toda a extensão da via. A Galeria Fátima, no número 241, é um exemplo da diversidade acolhida pelo bairro: no corredor escuro, há locadora de games, sex shop, bar, vidraçaria, costureira, salões de beleza e oficina de bijuterias.

Em meio a tamanha variedade de serviços, um passeio pela Riachuelo guarda surpresas. Uma delas é o sebo Das Raízes aos Frutos, instalado há seis meses no 257. Suas prateleiras escondem joias como um álbum de figurinhas alemão da década de 30 e um romance polonês de 1889 — cujo título o empresário Luiz Antônio Celestino ainda não conseguiu decifrar. E que tal fazer uma festa num casarão do século 18, que foi residência de um importante personagem histórico nacional? A partir de R$ 1 mil o espaço da Casa de Osório, onde hoje funciona a Academia Brasileira de Filosofia, pode ser reservado para eventos.

A construção foi residência do Marechal Osório — também conhecido como Marquês de Herval — Ministro da Guerra de Pedro II. Em uma de suas salas, há o cofre que guardava sua espada de ouro e diamantes. Atualmente, o espaço abriga departamentos como Filosofia do Esporte e Relações Internacionais.

Bentinho e Capitu

Mas o Marechal Osório não é o único personagem histórico relacionado à Rua do Riachuelo. Alguns registros dão conta de que foi no logradouro que morreu Jean-François Duclerc, o oficial da marinha francesa que tentou conquistar o Rio de Janeiro no século 18.

Fora isso, a Riachuelo é a rua que deu luz à mais popular — e insondável — suspeita de traição conjugal da literatura brasileira. Foi na Mata-Cavalos que Bentinho e Capitu, protagonistas de Dom Casmurro, romance mais famoso de Machado de Assis, se conheceram. A toada do vendedor de doces que cruzava as tardes no logradouro era um código de amor entre o casal — até a dona dos famosos olhos de ressaca admitir que a esquecera por completo. Foi a deixa para que Bentinho colocasse em xeque a devoção da esposa.

Hoje, é a toada do vendedor de sorvetes que se mistura às buzinas, no fim da tarde: a hora em que a Riachuelo começa mais uma de suas metamorfoses diárias.







Colaboração de Juliana Krapp

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