"Ainda rapaz, minha mãe anunciava com alegria, ao receber o salário modesto de funcionária pública no fim do mês: “Hoje vai ter camarão com catupiri”.
Prato denso pela consistência daquele requeijão no qual, ademais, ela adicionava deliciosos palmitos. Não usava molho de tomate de lata (“muito ácido”, dizia), nem colocava ervilhas. O camarão era grande, gostoso e bem mais barato então. Falo de molho de tomate e ervilhas porque, depois, a especiaria ganhou fama e até estrelato em nobres cardápios, tornando-se, também, salgada no preço. Apareceu em jantares finos e restaurantes metidos. E com molho de tomate e ervilhas.
Aos poucos, porém, foi perdendo ‘status’. Dos jantares finos sumiu, porque se tornou lugar comum e, também, porque camarão é caro e rico não é besta.
Nos restaurantes (r)existe, porém, pálida lembrança: o (que era) ‘catupiri’ com camarão está mais para molho branco com farinha de trigo que para o velho e saboroso requeijão. E o pior! Caso se deseje usar o catupiri mesmo, ao vivo e a cores, este envelheceu, tornou-se ralo e aguado, dissolve-se e dessora uma gordura amarelada. Sucumbiu aos imitadores. E, depois destes, veio ainda a legião de copos e mais copos de requeijão cremoso, díspares na qualidade e malandros nos preços, porém mais práticos até pelo aproveitamento do copo que substitui a simpática caixinha redonda, de madeira. Mas sem a mesma consistência de quase queijo, com certeza.
Pobre vovô catupiri, que não conseguiu entrar com saúde na terceira idade! A vertigem do consumo o pilhou desprevenido, sem condições de reproduzir a classe de antigamente. Mesmo assim resiste, que bom! Apesar de soltar a amarela e assustadora camada de gordura liquefeita, para tais iguarias ainda é melhor que o requeijão de copo, pois este precisa ser engrossado com farinha; e o “catupa”, não.
Ele virou, porém, marca e símbolo de um modo de cozinhar acepipes: coxinha de frango com catupiri; rissole de camarão com catupiri; empadinhas de galinha ou camarão com catupiri. O nome prolifera e dobra o preço: rissole de camarão custa a metade de rissole de camarão com catupiri. E a imaginação criadora disparou, inventando até um deslumbrante croquete de aipim recheado com catupiri. Comi um na ‘Chez Anne’ e quase chorei de emoção.
Mas o camarão com catupiri inesquecível de minha mãe, este não existe mais.
O tempo o levou. E a ela, cuja perda não tem solução."
A coluna de Artur da Távola era publicada em O Dia D. Este é seu último texto inédito.
O Rio ficou muito, mas muito mais pobre. Foi-se um homem íntegro, inteligente, culto, um político com densidade que representou o Estado com verdadeiro peso. Apontem um político atual do Rio de Janeiro com tantas qualidades, eu desafio...
Artur da Távola era o pseudônimo do carioca Paulo Alberto Moretzsohn Monteiro de Barros, nascido em 3 de janeiro de 1936. Formou-se em Direito em 1959, mas seu envolvimento com o movimento estudantil o levou, já no ano seguinte, a ser eleito deputado constituinte pelo estado da Guanabara.
Foi reeleito em 1962 e ingressou no PTB. Cassado pelo regime militar, exilou-se na Bolívia e Chile entre 1964 e 1968. Ao retornar, adotou o pseudônimo de Artur da Távola e começou a escrever sobre televisão no jornal ‘Última Hora’.
“Artur da Távola foi a primeira pessoa a fazer crítica de televisão a sério no Brasil”, recordou o cineasta Zelito Viana.
Ao longo da vida, publicou 23 livros e comandou programas de jornalismo e música clássica no rádio e na TV. Atualmente, dirigia a rádio Roquette Pinto, que passou por reformulação sob seu comando. “Era um craque em tudo o que se metia: rádio, TV, música, jornalismo, política... Ele fez uma revolução na Roquette Pinto. Agora abriu-se um buraco”, lamentou o jornalista Sérgio Cabral.
Em 1988, foi um dos fundadores do PSDB e se elegeu deputado federal constituinte. Em 1994, ao lado do ex-governador do Rio Marcello Alencar, concorreu e foi eleito ao Senado. “Fizemos a campanha juntos. Ele estava sempre alegre e brincávamos muito. Gostava da vida, era um homem romântico”, recordou Alencar.
Pensador independente, deixou o Senado em 2003, mas se manteve referência respeitada. “Artur era muita coisa numa pessoa só. Ele foi um exemplo de uma vida sem rasuras”, elogiou o presidente do PSDB no Senado, Arthur Virgílio. “É um dos grandes homens públicos de seu tempo, referência para minha geração”, afirmou o governador de Minas Gerais, Aécio Neves.
“Nos deixou um dos melhores homens públicos do Brasil. Perdi um amigo íntimo e sábio”, lamentou o prefeito de São Paulo, José Serra, que foi com Távola para o exílio no Chile.
Meio cultural sente a perda do crítico
Artur da Távola foi um defensor incansável da cultura no Brasil. “Sempre o admirei pela coragem de suas posições políticas e pelas crônicas inesquecíveis que assinou, fazendo análises precisas, inteligentes e argutas das nossas novelas”, disse a novelista Glória Perez.
“Ele emprestou sua cultura para que a TV brasileira não se tornasse um subproduto”, lembrou a atriz Christiane Torloni. “Seu papel foi de grande importância cultural no rádio e TV da nossa cidade. Como político, manteve-se sempre coerente com seus ideais democráticos”, disse o autor de novelas Manoel Carlos.
“Sua trajetória de escritor, jornalista e político sério dedicado às melhores causas são exemplo a ser observado com muita atenção por todos que desejem uma vida pública séria e limpa”, comentou o presidente da Academia Brasileira de Letras, Cícero Sandroni.
Um comentário:
os bons estão nos deixando, estamos ficando órfãos de pessoas cultas
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