28 de outubro de 2007

Ainda Garrincha...

Album do Futebol - Garrincha e seus últimos dias

Parte da reportagem de Marcelo Rezende -1979

Quem pode ver nesse homem o Mané Garrincha ? Esse homem que está a nossa frente não é aquele ponta direita que Deus trouxe ao mundo para provar sua existência com mais um milagre. Não é aquele “moleque” de drible faz-que-vai-mas-não-vai, simples, ingênuo, fatal ao deixar seus marcadores de pernas para o ar, incansável na busca da linha de fundo, “ali onde descobriu a felicidade; o resto foi alegria”.

Não, não é possível que esse homem, sob rigoroso tratamento médico, a caminhar entre as frondosas árvores do Casarão – antiga Casa da Moeda – da colônia de férias Paulo Frontim, cidadezinha próxima do Rio, seja o Mané. Que nada ! Esse homem tem o rosto inchado, o lado direito quase deformado, olhar de vaga amargura, mãos trêmulas, ar triste, a fazer a barba de alguns fios brancos com uma lâmina usada, tão velha quanto sua fisionomia, e um pedaço de sabão português ordinário que nem faz espuma, seja o Mané apresentado ao mundo em música, poesia e filme, em dribles e gols.

Como dizer não ? A gaiola de passarinho na mão e as pernas, uma delas seis centímetros mais curta, ambas cada vez mais tortas, são traços daquele querido Mané Garrincha, razão da conquista da Copa de 62, após a contusão de Pelé, dentro daquela endiabrada camisa sete da seleção brasileira. Diante desse homem, trêmulo, de muitos tiques nervosos, só uma coisa vem à cabeça: Garrincha morreu. Como morreu o Garrincha que transformou o Botafogo. Nos anos 50, no segundo clube das outras torcidas, no timaço conhecido por todos, rival do Santos ? Como morreu aquele Garrincha, meio matuto, meio índio, como diz João Saldanha ? E ali, à nossa frente, um homem solitário a vagar como uma assombração por esse casarão do século passado, teto alto, varanda sempre visitada por lindos beija-flores. Ali está um homem que nunca se preocupou com o sucesso, mas também não soube viver sem ele.

Manoel Francisco dos Santos, que a história conhece por Mané Garrincha. Não é mais o Garrincha daquela excursão do Botafogo ao México, de tantos dribles desconcertantes, como toureiro e touro, a torcida começou a gritar “olé” !. E o mundo adotou o “olé” criado por aquelas pernas tortas a desafiar os estudiosos. Que digam os soviéticos naqueles 2x0 na Copa de 58. Não é mais aquele menino escalado junto com Pelé por imposição de Nilton Santos, Didi e Belini. Nem aquele abusado moleque, especialista em colocar apelido nos companheiros.

A irreverência acabou, como sumiram também o carisma, a eletricidade, a energia. Agora, é apenas um mulato a se encolher no frio de Paulo Frontim. Nada mais aos 45 anos de idade. O ex –Mané, eterno nas histórias e lendas, sofre por duas marcas registradas de sua vida: o amor a bola e as mulheres. A vida lhe deu tudo, mas também lhe tomou tudo e, de repente. A queda começou em 1963, ao auge da fama, artrose no joelho. Mesmo assim, ele era obrigado pelos dirigentes a jogar por causa das rendas e das cotas dos amistosos. O fim foi rápido e tráfico. Antes, seis injeções no joelho. Sem aplausos, sem dinheiro, os amigos fugindo dele na rua, como resistir ? Seguiu o caminho do pai, seu Amaro, um guarda de segurança que morreu de cirrose de tanto beber. O rosto sofrido do Manoel que estudou até o quarto ano primário espanta quem o conheceu Mané. Seu médico confirma: mais um gole de bebida e pode acabar maluco. O cérebro está afetado.

No alto do morro de Paulo Frontin, Garrincha vive um mundo irreal, certo de que poderá voltar a encantar o mundo com seus gols e seus dribles. Ainda não se deu conta de que o tempo também passa para os ídolos. Como esperar realidade deste homem ? Um Garrincha que perdeu a casa em Jacarepaguá, por dividas. Que sonha em jogar de novo, que quer voltar a treinar os garotos da Legião Brasileira de assistência, onde ganha 18 mil mensais. Delira Mané ! Esse Mané que fez fama e fortuna de muitos centroavantes. E que só foi procurado na clínica de repouso, onde foi internado em caráter de emergência pelo compadre Nilton Santos.

Envelhecido, olhos esbugalhados, hipertenso, Mané encontrou um pouco de paz em Paulo de Frontin.

Marcelo Rezende que escreveu esta reportagem em 1979 não estava enganado. Pouco mais de três anos depois, no dia 20 de janeiro de 1983, padecendo dos mesmos e agravados problemas, viria a morte anunciada de Manoel Francisco dos Santos.

Um comentário:

spersivo disse...

Luiz,
Garrincha é um o Charles Chpalin da bola. Um poema de Deus no futebol. Nada existe que se compare e só se o raio cair duas vezes no mesmo lugar, mas, com o estilo de futebol de hoje parece impossível de voltar a acontecer. Possívelmente algum zagueiro animal o aleijaria sob a alegação de que o estaria ridicularizando. Boa semana. S.