Mané Garrincha, o segundo maior gênio da história do futebol, faria amanhã, 28 de outubro, 74 anos.
Por ROBERTO VIEIRA
Não. Não fiquei triste com a morte dele. Pra que mentir? Não pude me vingar. Eu preferia que ele nem tivesse existido. Pouparia muitos do desemprego, da vergonha. Você não imagina o que é rirem de você. Milhares de pessoas rindo de você, como se você fosse um palhaço de circo mambembe. Até mesmo seus amigos, seus filhos, rindo.
Eu sempre joguei sério. Na bola. Sempre fui respeitado. Quando era pequeno rezava todas as noites para ser um craque. Um jogador de futebol. Eu acreditava nas minhas orações. Obedecia meus pais. Pedia a benção. Vim jogar no Rio. Virei capa de revista. Comecei a sonhar com a seleção. Foi aí que meu mundo virou de pernas pro ar.
Eu o conhecia das peneiras. Um aleijado. Dava pena. Chegava calado e saía mudo. Quando os técnicos viam aquelas pernas eles o mandavam embora. Mas ele sempre voltava.
Foi então que um dia eu soube que ele enfeitiçou o Nilton. Logo o Nilton, meu ídolo! E foi escalado pra jogar no Botafogo. E começou a fazer gols.
Imaginei que devia ser piedade divina e fiquei na minha. Um dia nosso destino iria se cruzar. E seria seu fim.
Coronel e Jordan tinham conversado comigo:
'Cuidado!'
Eu fiquei rindo. Ele também tinha enfeitiçado os dois. Prometi a mim mesmo que eu ia acabar com aquela palhaçada.
Chegou o dia. Domingo. Maracanã lotado.
Batem o centro. Vem a primeira bola e eu me antecipo. Sério. Na bola. Toco para o ataque e volto correndo para minha posição. Sem pena. Pois o que Coronel e Jordan sentiam era pena. Eu ia mostrar ao mundo a farsa das pernas tortas.
A segunda bola escapou de suas chuteiras.
O primeiro tempo se encaminhava para o fim quando ele domina a pelota. Eu entro no meio do joelho dele. Sem pena. Pra quebrar. Ele cai. Olha o joelho. Levanta.
Alguém na geral grita:
'Quebra ele!'
Ele sorri. Para a geral e para mim. Como um passarinho no alçapão. Aquilo me desconcertou. A pancada que eu dei poderia derrubar uma parede. Mas ele levantou sorrindo pra mim.
O Maracanã lotado.
E a bola chegou até ele um segundo antes de mim. E ele partiu na direção do gol. Eu atrás. Ele parou, súbito. Eu passei, lotado. Voltei e dei um carrinho. Ele escapou pela direita. Eu levantei e ele driblou pela esquerda. Beijei o chão. Ele cruzou na cabeça de Paulo Valentim. Gol.
Perdi a conta das vezes em que fui driblado. Não vi mais a cor da bola. O Botafogo venceu por 6x2. Alegria do povo.
Porém, um lance ficou gravado em minha memória. Sem dribles. Pisei num buraco. Chorei de dor. Ele partia em direção ao gol. Seria o sétimo gol. A torcida já gritava '7, 7, 7'... As mesmas pessoas que gritavam 'quebra, quebra, quebra'.
Inexplicavelmente ele parou e tocou a bola para fora. Tocou a bola para fora pra que eu fosse atendido.
Fratura. Aleijado. Ele me ajudou a sair de campo.
Nunca mais nos vimos.
Eu vim trabalhar nessa fábrica. As capas de revista eu guardo lá em casa.
Com o tempo ele virou gênio. Tão aleijado quanto eu. Cheio de mulheres. De fama.
De vez em quando vem um jornalista como você vem me entrevistar.
Quer saber a verdade. A verdade?
A verdade é que não. Não fiquei triste com a morte dele. Pra que mentir? Não pude me vingar.
Eu preferia que ele nem tivesse existido."
Um comentário:
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