Em hipótese alguma pretendo resolver aqui uma questão em relação à qual as partes já esgotaram seus argumentos através dos séculos. No entanto, nós, católicos, sabemos que a arte religiosa e os santos nos proporcionam imensos privilégios estéticos e espirituais.
No Antigo Testamento, Deus não podia ser representado porque não tinha corpo e toda representação podia gerar idolatria. Isso fazia sentido (como muitas outras vedações do AT, se compreendidas nas circunstâncias culturais e históricas em que foram prescritas). Com Cristo, inaugura-se uma nova ordem porque ele é a imagem viva do Deus verdadeiro. Ademais, não imagino que alguém, hoje, se considere obrigado a cumprir as dezenas de preceitos estatuídos em Exodus 21. Dá uma lida e depois me conta.
Nós católicos não adoramos imagens. Mas, como seres humanos, não desperdiçamos as potencialidades da comunicação através da escultura, da pintura, assim como a valorizamos na música, na dança, no teatro e em todas as formas de arte. Que pode ser sacra ou não. A arte sacra eleva o espírito para Deus. Na condição de turista que gosta de viajar pela Europa exatamente para conhecer igrejas posso te assegurar que aquela expressão de fé dos grandes mestres faz imenso bem através dos séculos. Nenhuma escultura ou pintura de Michelangelo afastou um católico do Deus verdadeiro! Quem, diante da Pietá, não se deixa tocar pela dor missionária de Maria e pelo sacrifício que nos trouxe a Redenção? Idolatria isso? Idolatria nisso? Inclino-me a crer, antes, que essa fixação na norma, desfigurada de seu contexto, seja, ela sim, uma nova idolatria... da norma. Ou um fetichismo (seletivo) em relação ao texto bíblico.
Há uma grande perda, também, na rejeição dos santos cujas imagens enfeitam os templos católicos. Aos milhares centenas, eles, suas vidas, seus exemplos, seus textos, são inestimável sustento para os fiéis através dos séculos. São seres humanos que buscaram a perfeição e nos mostram, com suas pegadas na história, os caminhos da imitação de Cristo no cotidiano. Desconhecê-los, sepultá-los para sempre com toda a inestimável bagagem de suas vidas e não preservar, através da arte, suas notáveis figuras humanas, em nome de um preceito que perdeu sentido após a Encarnação do Verbo? Que tremendo desperdício!
Como esquecer que ”O Pai dará a vocês tudo o que pedirdes em meu nome” (João 15,16)? Ou da cura do coxo de nascença, operada por São Pedro e São João: “Não tenho nem ouro nem prata, mas o que tenho isto te dou. Em nome de Jesus Cristo Nazareno, levanta-te e anda” (Atos 3,1-9)? Os santos, meu caro, fazem milagres em nome de Jesus! Com as palavras de Atos 19, 11-12, “Deus fazia não poucos prodígios por meio de Paulo”. E por aí vai.
Desperdício maior só quando se despreza a nobilíssima figura da mãe de Jesus por igual motivo, sob a alegação de nós, católicos, exageramos no culto a Maria. Ora, ora! Tenho certeza de que nenhum católico teceu a Maria louvor maior, deferência superior aquela que lhe foi prestada pelo próprio Deus quando a elegeu para a Encarnação. Poderia haver na miséria humana exaltação equivalente? Oração superior à que lhe prestou o anjo? Ave! Cheia de graça! O Senhor é contigo! Por um lado, duvido que Cristo se incomode com quaisquer homenagens à sua mãe. Por outro, não creio que o desapreço a ela Lhe seja de muito agrado.
Como escrevi no início, o debate sobre esse tema iniciou com os cismas do século 16, quando a proibição às imagens foi retomada com vistas à formação das novas identidades cristãs que emergiam. Já em 1532, Thomas More, não por acaso santo da Igreja Católica, refutando texto do reformador William Tyndale, alinhou um argumento muito interessante, que transcrevo abaixo:
Imagens são livros necessários aos sem instrução na mesma medida em que bons livros são necessários aos instruídos. Pois todas as palavras são apenas imagens que representam coisas que o escritor ou o orador concebe em sua mente, tanto quanto a figura de uma coisa emoldurada pela imaginação, e deste modo concebida na mente, é tão somente a imagem representativa da coisa mesma sobre a qual o homem pensou.
Por exemplo, se eu lhe conto um episódio da vida de um amigo meu, a imaginação que dele tenho em minha mente não é ele mesmo, mas uma imagem que o representa. E quando eu o nomeio, seu nome não é nem ele mesmo e nem a figura que dele tenho em minha imaginação, mas apenas uma imagem que apresenta a você a imaginação da minha mente. Se eu estiver muito longe de você para lhe contar o tal episódio, então será a escrita, e não o nome mesmo, uma imagem representativa do nome. E, no entanto, todos esses nomes falados e todas essas palavras escritas não são signos ou imagens naturais, mas signos construídos por consentimento e convenção entre os homens para significar as coisas, enquanto as imagens pintadas, esculpidas ou entalhadas, podem ser tão bem trabalhadas, tão fiéis à verdade e ao objeto vivo, que, naturalmente, acabam representando-o muito mais eficazmente do que o nome falado ou escrito. Pois aquele que nunca tenha ouvido o nome do meu amigo, mas que tenha visto um seu retrato, se um dia o vir em pessoa, o reconhecerá através da imagem trazida à memória.
É impossível negar a sabedoria dessas considerações, bem como será difícil chamar de idólatra, na próxima Sexta-Feira Santa, o fiel católico ajoelhado diante um crucifixo qualquer, em casa ou na igreja, lembrando da Paixão, da Redenção, e participando, em espírito, do sofrimento da Cruz. Ao fazer isso, ele reproduz a experiência do pequeno grupo que se manteve no Calvário – Maria e sua irmã, João, Maria Madalena e a mulher de Cleofas.
Considero uma bênção usufruir, em plenitude, de toda essa riqueza simbólica. E sei, repito, que não vamos decidir esta questão aqui. Razão pela qual “the defence rests”.
Percival Puggina (64) é arquiteto, empresário, escritor, titular do site www.puggina.org, articulista de Zero Hora e de dezenas de jornais e sites no país, autor de Crônicas contra o totalitarismo e de Cuba, a tragédia da utopia.
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