Seguinte: vem aí a Lei Caó, que pune o racismo como crime inafiançável. Pra mim já vem tarde. É que me casei como uma preta. Tinha nome de preta, Maria Auxiliadora, profissão de preta, cozinheira, e endereço de preta, morava no Lote 15, em Caxias. Naquela época eu tinha um conhecido que recebia aos sábados na sua cobertura do Leblon. Artistas e intelectuais para falar mal do governo e tomar scotch com salgadinhos. Era a tal de open-house, nome que se dava à boca livre. Quando pintei lá pela primeira vez com a minha preta foi um frisson. Alta, chamava atenção pelo porte de princesa. Quando viram que era uma empregada doméstica que só tinha o curso primário foi um gelo. O dono da casa me puxou para um canto. “Ô Jaguar, apareça mas venha só, entendeu?” Entendi e mandei-o à merda. E olha que o cara, um famoso editor, era do Partidão. Ainda tentei forçar a barra, levando-a aos bares da moda. O pessoal fazia de conta que ela era a mulher invisível. Ela, por sua vez, achava um saco. Não entendia por que ficavam a noite toda discutindo Cinema Novo aos berros. No 706 teve um lance gozado. Fui ao banheiro e quando voltei ela me disse: “Aquele baixinho quis me beijar, dei um tapa nele.” O baixinho, que procurava os óculos, era Gato Barbieri. Também não deu certo levá-la aos ensaios da Quilombo. Ela não era boa de samba. Em matéria de música curtia Elton John e Benito de Paula. Fui atrás da turma dela em Caxias. Quando chegava, o papo esfriava, ficavam grilados com aquele ruço de olho azul. Discriminados por brancos e pretos. Acabamos isolados num apê no Leme. Bebendo a cerveja da solidão e a cachaça do tédio para rebater. Quando voltei de uma viagem a Cuba descobri que ela tinha me trocado por um carteiro. Preto. Foi assim que, depois desses anos, virei branco de novo.
Jaguar, Cartunista, humorista e boêmio, escreve às quartas no jornal O Dia
2 comentários:
Caraca! Essa foi boa!
sds
Lu,
Já fui preto muitas vezes, inclusive em Washington, mas lá também era branco para os pretos, logo aprendi que ser discriminado, seja por quem for, é um "mensalão", sinônimo atual para a nossa celébre "M...!". Silvio Persivo. Maravilhosa a crônica.
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