30 de julho de 2005

Já fui preto, crônica do Jaguar

Em setembro de 88, pouco antes da Lei Caó, publiquei uma crônica na Folha da Tarde, de São Paulo. Martinho da Vila a incluiu – subida honra – no seu livro Kizombas, Andanças e Festanças.
Seguinte: vem aí a Lei Caó, que pune o racismo como crime inafiançável. Pra mim já vem tarde. É que me casei como uma preta. Tinha nome de preta, Maria Auxiliadora, profissão de preta, cozinheira, e endereço de preta, morava no Lote 15, em Caxias. Naquela época eu tinha um conhecido que recebia aos sábados na sua cobertura do Leblon. Artistas e intelectuais para falar mal do governo e tomar scotch com salgadinhos. Era a tal de open-house, nome que se dava à boca livre. Quando pintei lá pela primeira vez com a minha preta foi um frisson. Alta, chamava atenção pelo porte de princesa. Quando viram que era uma empregada doméstica que só tinha o curso primário foi um gelo. O dono da casa me puxou para um canto. “Ô Jaguar, apareça mas venha só, entendeu?” Entendi e mandei-o à merda. E olha que o cara, um famoso editor, era do Partidão. Ainda tentei forçar a barra, levando-a aos bares da moda. O pessoal fazia de conta que ela era a mulher invisível. Ela, por sua vez, achava um saco. Não entendia por que ficavam a noite toda discutindo Cinema Novo aos berros. No 706 teve um lance gozado. Fui ao banheiro e quando voltei ela me disse: “Aquele baixinho quis me beijar, dei um tapa nele.” O baixinho, que procurava os óculos, era Gato Barbieri. Também não deu certo levá-la aos ensaios da Quilombo. Ela não era boa de samba. Em matéria de música curtia Elton John e Benito de Paula. Fui atrás da turma dela em Caxias. Quando chegava, o papo esfriava, ficavam grilados com aquele ruço de olho azul. Discriminados por brancos e pretos. Acabamos isolados num apê no Leme. Bebendo a cerveja da solidão e a cachaça do tédio para rebater. Quando voltei de uma viagem a Cuba descobri que ela tinha me trocado por um carteiro. Preto. Foi assim que, depois desses anos, virei branco de novo.
Jaguar, Cartunista, humorista e boêmio, escreve às quartas no jornal O Dia

2 comentários:

Elaine disse...

Caraca! Essa foi boa!
sds

spersivo disse...

Lu,
Já fui preto muitas vezes, inclusive em Washington, mas lá também era branco para os pretos, logo aprendi que ser discriminado, seja por quem for, é um "mensalão", sinônimo atual para a nossa celébre "M...!". Silvio Persivo. Maravilhosa a crônica.