3 de fevereiro de 2007

Houve uma vez um Paulo Francis

Celso Lungaretti (*)


Muita bobagem pretensiosa vai ser publicada neste final de semana, quando a imprensa reverenciará o analista político e crítico de cultura Franz Paul Trannin da Matta Heilborn, mais conhecido como Paulo Francis, que morreu no dia 4 de fevereiro de 1997, aos 66 anos de idade.

Ele, que sempre lamentou a derrubada de árvores para a fabricação do papel-jornal desperdiçado com tolices, certamente abominaria o que se escreverá a seu respeito agora. Talvez repetisse uma daquelas inesquecíveis frases ferinas, características do seu jeito carioca de ser. Por exemplo: "A sociedade de massas é, por definição, o fim da civilização. Bolsões de vida inteligente sobrevivem a duras penas."

Depois de estudar em colégios de jesuítas e beneditinos, Francis cursou por uns tempos a Faculdade de Filosofia da Universidade do Brasil, trocada por uma pós-graduação em Literatura Dramática na Universidade de Columbia (Nova York), que também não concluiu.

Chegou a ser ator amador, mas acabou no nicho tradicional dos que são melhores para escrever sobre suas paixões artísticas do que para personificá-las: começou sua carreira jornalística como crítico teatral, no Diário Carioca.

Relatou, mais tarde, um episódio pitoresco do seu noviciado. Entregou uma crítica toda pomposa, repleta de termos pernósticos, ao seu editor. Ao recebê-la de volta, viu um grosso traço vermelho circundando a expressão “via de regra”. E o comentário: “Via de regra é a vagina”. [Para os jovens que desconhecem o linguajar de outrora, esclareço que “regras” eram um eufemismo para menstruação. E, claro, a palavra usada para designar o órgão genital feminino foi outra, mais chula.]

Francis disse que essa foi a primeira e única lição aproveitável de jornalismo que recebeu: escrever com simplicidade e clareza, em vez de pavonear-se com exibições desnecessárias de erudição.

Também comentou que tudo que há para se aprender de jornalismo, aprende-se em 15 dias numa redação. Daí sua avaliação de que o fundamental para o exercício dessa profissão é uma formação cultural sólida, humanística e universalizante. Quanto às técnicas, poderiam ser ensinadas em meros liceus de artes e ofícios. [Concordo plenamente: se a especialização é castradora em outras atividades, muito mais no jornalismo, que tem tudo a ver com história, sociologia, psicologia, antropologia, política, economia, literatura. Quem não consegue refletir sobre o mundo em que vive, melhor faria direcionando-se para administração de empresas.]

Convidado por Samuel Wainer para assinar uma coluna política na Última Hora, assume posição de esquerda no conturbado ambiente político de 1963. E continuaria combatendo a direita após o golpe militar, inicialmente como um dos jornalistas mais respeitados do Rio de Janeiro.

O lançamento do semanário O Pasquim, em junho de 1969, lhe deu projeção nacional. Era o guru da turma em todos os assuntos referentes à política nacional e internacional, bem como à visão de esquerda da cultura. Com seus conhecimentos vastíssimos, dominava qualquer discussão.

Leitor assíduo de um sem-número de publicações estrangeiras, tinha sempre algo novo a dizer sobre a intervenção estadunidense no Vietnã, um dos grandes temas da época. Disponibilizava as informações que a grande imprensa, por ideologia, covardia ou incompetência, sonegava dos leitores.

E, sendo um dos críticos mais consistentes e contundentes do reacionarismo dos EUA, também não poupava a URSS, que analisava sob a ótica trotskista. Isso só fazia aumentar o seu prestígio aos olhos de uma geração que se decepcionara terrivelmente com o esmagamento da Primavera de Praga.

Cansado de ser preso e censurado pela ditadura, mudou em 1971 para Nova York, de onde mandava seus textos para o próprio Pasquim, a Tribuna da Imprensa, a revista Status e a Folha de S. Paulo (quando o diretor de redação era Cláudio Abramo, de formação trotskista).

Continuava, basicamente, um homem de esquerda, mas travava polêmicas azedas com o que ele considerava “esquerdistas de salão”, como a feminista Irede Cardoso. [Ela sofreu um dos maiores massacres intelectuais a que já assisti.]

Paulo Francis é mais um dos intelectuais brasileiros que foram perdendo o pique à medida que a ditadura ia deixando de exibir suas garras.

Como estava num posto de observação privilegiado, captou bem a tendência desestatizante do final do século passado, ajudando a impulsioná-la com seus escritos em O Estado de S. Paulo e no programa de TV a cabo Manhattan Connection.

Mas, se estava certo quanto à falta de pujança da economia soviética e o parasitismo das estatais brasileiras, não percebeu que o mundo engendrado pela globalização viria a ser uma versão mais desumanizada ainda do capitalismo selvagem.

Acabou como um daqueles medalhões midiáticos que antes ridicularizava, aclamado mais por ter se tornado celebridade do sistema do que pela real qualidade do seu trabalho – como suas incursões pela literatura, em que a racionalidade excessiva deixa tudo com um jeitão artificial, de trama concebida para provar tese.

Morreu na hora certa, antes que o admirável mundo novo erguido sobre os escombros do muro de Berlim mostrasse suas feições mais monstruosas.

Ou, pelo contrário, talvez tenha perdido a chance de constatar que o fim do socialismo real não significava o fim da História, com o status quo se tornando tão opressivo que os homens estão sendo obrigados a buscar uma nova utopia.

O certo é que, independentemente de haver caído numa armadilha da História em sua última fase, foi um intelectual articulado e consistente como dificilmente se vê nestes tristes trópicos, deixando o legado de uma atuação memorável na segunda metade dos anos 60 e ao longo de toda a década de 1970.

Talvez o melhor epitáfio para Paulo Francis seja outra de suas frases célebres: "Não há quem não cometa erros e grandes homens cometem grandes erros".

(*) Celso Lungaretti - é jornalista e escritor


Saudades!!!


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