Enquanto isso, Emília Gomes Camargo Ferreira, 23 anos, mãe recente, sofre numa cadeia em São Paulo a pena decretada pelo juiz Márcio Sanandag: 20 meses de reclusão. Motivo do castigo: tentara surrupiar um carrinho de bebê com badulaques para crianças. Valor dos produtos: R$ 200.
Emília teria de repetir 100 vezes o mesmo delito para chegar aos R$ 20.000 doados por Marcos Valério ao Professor Luizinho, a mais barata criatura do pântano. Cometera um genuíno ''crime de bagatela'' (furto de quinquilharias, no jargão dos doutores data venia). Caso fosse beneficiada pelo ''princípio da insignificância'', sublinhado pela inexistência de antecedentes criminais, estaria em casa.
Mas estamos no Brasil - e aqui certas leis, como as vacinas, não pegam. ''Em casos assim, o mal do crime não chega a justificar o mal da pena'', ensina o jurista Luiz Flávio Gomes. O juiz e o promotor devem ter cabulado a aula em que essa lição foi ministrada.
Na luta pela liberdade subtraída há três meses, a prisioneira conta apenas com a advogada Sônia Regina Drigo. Uma única aliada, mas uma aliada e tanto. Uma das mais combativas defensoras públicas de São Paulo, Sônia conseguiu encerrar, em 24 de maio passado, o pesadelo imposto a Maria Aparecida de Matos.
Brasileira, negra, 25 anos, dois filhos, sem emprego fixo, sujeita a surtos psicóticos decorrentes de um atropelamento sofrido na infância, Maria ficou um ano e sete dias na prisão por ter furtado um xampu e um creme para cabelos. Conheceu todas as estações do horror. Perdeu um olho. Quase perdeu a vida.
Graças a um habeas-corpus concedido pelo Superior Tribunal de Justiça, a advogada Sônia devolveu Maria Aparecida à família, que sobrevive na periferia paulista. A casa de madeira abriga a mãe Valdomira, 54 anos, os filhos de 5 e 3, a irmã Gislaine, 30, e dois irmãos. Entrara na cadeia com 59 quilos. Saiu com 40.
O vocabulário de Maria, que só sabe desenhar o nome, não vai além de 500 palavras. Na delegacia, assustada, recolheu-se a um silêncio mal interpretado pelos policiais. ''A suspeita prefere só falar em juízo'', registra o boletim de ocorrência. Por ser reincidente - furtara um par de tênis e um xampu - foi promovida a ''criminosa de alta periculosidade''.
Segundo a advogada, Maria ''pagou um preço muito alto pela falência do sistema judiciário, pelo descaso de funcionários públicos, incluindo juízes ou promotores''. O calvário incluiu a escala num hospício e custou ao governo estadual R$ 9.786,00 (os produtos que Maria furtou hoje valem R$ 24). Terminou no STJ.
Coube ao mesmo tribunal arquivar, há dias, a ação penal movida há cinco anos contra dois homens acusados de furtar num frigorífico paulista seis frangos avaliados, cada um, em R$ 3,50. ''Um crime de bagatela que não apresenta danosidade relevante'', decidiram os juízes. Maria não teve tanta sorte. É assim o Brasil dos desvalidos. Enquanto isso...
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