15 de abril de 2006

Botafogo, Botafogo campeão.

Apesar de ter figurado com maior ou menor intensidade na obra de autores consagrados como Paulo Mendes Campos, Nelson Rodrigues, João Cabral de Mello Neto, Eduardo Galeano e até Albert Camus – que foi goleiro –, o futebol ainda é um assunto tabu quando se discute literatura. Há quem diga que é impossível abordar um tema tão popular com textos de alto nível, da mesma maneira que não é incomum encontrar críticas aos cronistas esportivos que injetam doses de erudição em suas análises cotidianas do velho esporte bretão. Quem discorda de tudo isso ficaria em êxtase diante de “Botafogo – Entre o Céu e o Inferno”, livro de Sérgio Augusto. Com análises precisas como um lançamento do Gérson, conhecimentos enciclopédicos dignos de um Nilton Santos, a picardia dos dribles de Garrincha e a sofisticação de um Didi conduzindo a bola pela meia-cancha, Sérgio Augusto concebeu uma obra capaz de agradar até mesmo quem não torce pelo Botafogo – inclusive aqueles três ou quatro brasileiros que não gostam de futebol.

Em brilhante prefácio da obra, o amigo e fanático botafoguense João Moreira Salles chamou a atenção dos leitores para uma frase do autor, que resume perfeitamente a filosofia alvinegra: “Torcer por time de massa é como ler apenas best seller”. Meu padrinho literário Sérgio Augusto leu muita coisa – e felizmente pouquíssimos best sellers. Graças a isso, seu estilo é elegante e apaixonado, sem deixar de lado a informação bem pesquisada e acima de tudo o bom humor. Ele tem razão: ser Botafogo não é para qualquer um. O botafoguense é aquele sujeito que não precisa do apoio moral da maioria como o flamenguista, que não pretende ser o arquiinimigo e o contraponto do clube mais popular como o vascaíno e, ainda que sem flertar com o populismo, não se considera de elite a ponto de ser Fluminense. O torcedor alvinegro é, portanto, essencialmente diferente dos demais.

Um torcedor diferente porque, ao longo da história, construiu uma relação muito especial com o sofrimento. Quando ouve um rubro-negro queixar-se da dor de não conquistar um título nacional desde os tempos de Júnior, um tricolor desfilar seu rosário de rebaixamentos consecutivos até a terceira divisão e um vascaíno comentar o suplício de torcer por um clube governado por um déspota, o botafoguense deixa escapar um sorriso de superioridade e fala baixinho, como que para si mesmo: “vinte e um anos...”. Pois é. Sofrimento é uma coisa, mas vinte e um anos sem títulos é algo que desafia os limites da fé. Quem é capaz de torcer por um time que passou duas décadas sem uma volta olímpica está pronto para tudo. E assim é o torcedor do Botafogo: foi ao inferno, viu o diabo de perto, retornou – e agora vive com a paz dos sábios, sem esperar de seu time mais do que ele pode oferecer.

Além do jejum mais longo da história do futebol carioca, das superstições intermináveis, dos ídolos trágicos como Garrincha e Heleno, o torcedor alvinegro teve que se acostumar com uma outra vicissitude: aquela do “há coisas que só acontecem com o Botafogo”. Juntem todos esses ingredientes num mesmo caldeirão, adicione-se uma final com o Madureira, clube que jamais foi campeão carioca e era a grande zebra da decisão, e o leitor poderá ter uma idéia do estado de espírito dos botafoguenses nos últimos dois finais de semana. E se para alguns a vitória na primeira partida representou alívio, para outros, pessimistas profissionais, a vantagem de 2 x 0 era apenas uma prova cabal e irrefutável da derrota trágica na finalíssima.

Apesar do histórico de tragédia, de pessimismo, de má sorte e de amargura, domingo os botafoguenses de todos os matizes comemoraram feito loucos. Não comemoraram apenas porque o título carioca era muito ansiado em General Severiano. Mas comemoraram, sobretudo, porque ele chegou de forma maiúscula e incontestável. O Botafogo não tomou conhecimento do Madureira. O primeiro grande título da gestão de reconstrução que Bebeto de Freitas faz no clube foi obtido em meio a cinco gols e muita festa nas arquibancadas, nas duas partidas. O Alvinegro colocou a força de sua tradição em campo, como já havia feito na segunda etapa da decisão da Taça Guanabara, contra o América. O Botafogo ganhou com hierarquia. E quando um clube com a grandeza do Botafogo faz valer sua hierarquia, o desfecho é inevitável. Para alegria dos torcedores mais arrumados de cabeça – e para desconcerto dos pessimistas retintos. Parabéns Botafogo. Quando jogas assim, não podes perder. Perder pra ninguém.
no mínimo, Marcos Caetano

2 comentários:

Anônimo disse...

Um pouco de história:
Se o futebol teve um herói de esquerda, esse cara foi o Afonsinho. Personagem carismático, destemido, engajado, por vezes quase quixotesco, o rebelde meia do Botafogo ocupou um lugar muito especial no imaginário coletivo do Brasil dos anos 70, um país ansioso por transformações sociais e em busca da tão sonhada abertura política. Ele foi o primeiro líder profissional das estrelas dos gramados a lutar pelo seus direitos, uma luta pela qual pagou um preço caro, mas que, como ele mesmo não se cansa da dizer, valeu a pena.
Afonsinho dentro de campo era um gênio, no toque de bola e no drible, fora dela o gênio foi cassado, por suas escolhas não serem do agrado dos generais e dos cartolas de então.
Infelizmente o meio campista nunca foi convocado para a seleção Brasileira, o que se justifica pelo fato de suas posturas serem de confronto ao regime militar e a estrutura do futebol nas décadas de 70 e 80 do século XX.
Afonso Celso Garcia Reis, jogador, médico, musicista, boêmio, viveu até sua adolescência em Jaú, cidade do interior de São Paulo. No início da década de 60 ingressou nas divisões de base do XV de Jaú e em seguida, foi jogar no Botafogo Carioca.
O Botafogo, que ele tanto amou, não foi capaz de retribuir tal sentimento. Nos anos 70, nem mesmo o futebol escapou da ditadura militar. Eram os tempos dos campeonatos inchados para atender aos interesses de ''integração nacional''. Torneios que, no final daquela década, chegaram a ter quase cem clubes. Aonde a Arena vai mal, põe um time no campeonato nacional. Aonde a Arena vai bem, põe um também, era o lema da CBD.
Por alguma razão insondável, os militares não gostam de barba e cabelo comprido. Afonsinho sabia disso, claro. Mas, como não jogava para um regimento e sim para um time de futebol, achou que poderia cultivar tranqüilamente seus longos cabelos e uma barba de fazer inveja a qualquer companheiro da época. Ledo engano. Barrado no Botafogo em 1971, até de treinar, por se recusar a obedecer as ordens dos dirigentes do clube que o obrigavam a cortar o cabelo e a barba, impondo através desta medida, a cultura autoritária e repressora dos ditadores. No Brasil, cabelos e barba comprida, em meado da década de 70, era layout irreverente. Usuários eram confundidos como subversivos ou fora da lei.
Os conservadores dirigentes do clube acreditavam que ficariam mal com o governo se mantivessem no time aquele ameaçador barba ruiva, por maior que fosse o seu talento. Além disso, crime dos crimes, Afonsinho era letrado. Pior ainda, politizado, diferentemente da maioria dos jogadores monossilábicos, era líder, inteligente, combativo e suas entrevistas eram marcadas por posições firmes. Cursando medicina na faculdade, o articulado barbudo fez amizades com músicos, artistas e intelectuais e passou a liderar movimentos estudantis no campus. Não por acaso, o craque foi eternizado numa canção de Gilberto Gil, "meio-de-campo" cantada pela saudosa Elis Regina ("Prezado amigo Afonsinho; eu continuo aqui mesmo; aperfeiçoando o imperfeito; dando tempo, dando jeito") e virou filme pelas mãos de Osvaldo Caldeira. O documentário Passe Livre foi considerado importantíssimo na consolidação dos circuitos alternativos de cinema no Brasil.
A atitude engajada e as ''más companhias'' acabaram barrando Afonsinho no Botafogo. Para piorar, além de não aproveitar o jogador (sem o jogador, o Botafogo perdia muito da inteligência de seu meio-de-campo. Afonsinho antevia a jogada, mal recebia o passe já acionava rapidamente um companheiro de ataque, diferente de vários meias que tocavam a bola de ladinho, jogava em profundidade e tinha uma belo arremate de meia distância), os cartolas se recusavam a negociá-lo. Foi quando ele decidiu recorrer à Justiça, algo que os jogadores da época não conheciam nem de nome. Numa decisão surpreendente, o TJD concedeu passe livre a Afonsinho, transformando-o no primeiro jogador alforriado do futebol brasileiro. Durante a luta judicial, jogou pelo Olaria, depois de um ano de luta na justiça, recebeu o direito ao passe livre para jogar onde quisesse. A vitória de Afonsinho na Justiça Desportiva nos Anos 70, foi a vitória pelo direito ao trabalho e por liberdade de expressão e de organização.
Esta opção, fez com que a ditadura o perseguisse, sendo fichado no SNI (Serviço Nacional de Informações), como subversivo e comunista. E mais que isto, em um período de terror e do cala boca, questionar o sistema futebolístico de então, era bater de frente com os militares. No entanto nada o impediu de continuar lutando por justiça e democracia.
As pressões do governo militar impediram que ele obtivesse um bom contrato. Ainda assim, ele que havia jogado com Garrincha no Botafogo foi jogar no Santos de Pelé e Edu (outro grande jogador que nasceu em Jaú) antes de perambular por vários clubes como: Vasco, Flamengo, Atlético Mineiro, voltou ao XV de Jaú e encerrou a carreira em 1982, aos 35 anos de idade, no clube que por pouco não o lançou, o Fluminense.
Como os bons lutadores são aqueles que continuam até o fim, Afonsinho jamais deixou de se empenhar pelas causas sociais. Hoje exerce a profissão para a qual se formou. Depois de ver e ouvir tanta sandice no futebol, foi trabalhar como médico-psiquiatra do Instituto Pinel, onde realiza um trabalho de esporte, recreação e lazer como complemento do tratamento psiquiátrico, visando a combater a estigmatização dos deficientes mentais. Quem conviveu com tantos cartolas deve tirar isso de letra...
Além disso, o ainda barbudo, mas agora com cabelos ralos e grisalhos, comanda um projeto que promove a assistência a crianças carentes através do futebol. A escolinha do Afonsinho fica atualmente na escola Tia Ciata, entre o Terreirão do Samba e o edifício Balança Mas Não Cai. Ao seu lado no projeto, sugestivamente batizado de Ex-Cola, estão os antigos companheiros de Botafogo Nei Conceição e Orlando Vovô.
Muita gente esteve envolvida com a Ditadura, muita gente foi vítima da Ditadura, mas só um brasileiro venceu a Ditadura e este homem foi, Afonsinho.
Como o Navegante Negro do Aldir Blanc, aquele que tinha por monumento as pedras pisadas do cais, Afonsinho não colheu todas as glórias que um craque como ele poderia colher. Mas obteve uma glória que poucos jogadores obtiveram na carreira: o respeito como cidadão e líder. Em meio a tantos jogadores que se calaram, Afonsinho teve a coragem de lutar, ainda mais... naquela época.

spersivo disse...

Luiz,
O Afonsinho foi um senhor craque mesmo, porém também não era fácil não...digamos que foi um Romário do meio de campo, politizado e que sabia chutar...Isto do beicinho de intelectuais ao futebol é besteira, principalmente quando o grande Nelson Rodrigues foi cronista esportivo, Ary Barroso comentarista e grandes figuras musico-literárias, como Lamartine Babo, Antônio Maria e Vinícius de Moraes frequentaram a área. É, muitas vezes, "pernosticismo literário". S.