26 de setembro de 2005

Isca de fígado

Nada contra shitake, sushi, sashimi, todo esse tremelique que chia modernidade na cozinha e encanta jurados do Prêmio Rio Show de Gastronomia — mas, senhores, por mais finos e antenados com as últimas notícias que todos sejam, por mais experimentados que seus paladares tenham sido com a comida em movimento do espanhol Ferran Adrià, ou da cozinha molecular do inglês Heston Blumenthal, qual o problema com a santa rabada, a dobradinha, o fígado acebolado, o frango com quiabo e o filé com dois ovos, essas comidas que formaram a argamassa que mantém em pé a raça carioca e agora desaparecem das mesas elogiadas?
Eu vi a lista dos premiados em O GLOBO e, de entrada, achei assim meio pêra assada ao gorgonzola. Faltou uma sopa de músculo para molhar o pão. Será que não tem um tira gosto no capricho, um bolinho de aipim com carne seca desfiada, para começar os trabalhos?
Quem sou eu para reclamar de mais uma azeitona de ouro no currículo do bacalhau com natas do Antiquarius. Faço gosto. Ai de mim deixar de aplaudir nova comenda no peito do chef Salvatore Loi, do Gero, craque até na bolinha de manteiga do couvert. Feliz a cidade capaz de se banquetear com essa endívia holandesa em cima da mesa — mas, em meio a tanta bruschetta e supremo de frango orgânico ao ragout de favas e estragão, será que ninguém lamberá mais os beiços com o mocotó do Penafiel?
Será que todos esses senhores, mestres no uso do guardanapo antes de se levar o copo de vinho à boca, gourmets capazes de reconhecerem, sem perguntar ao garçom, todos os ingredientes que diferenciam uma salada lyonaise de uma chavignol — será que eles não passearam o apetite uma vez sequer pela capa de costela com feijão manteiga do Escondidinho no Beco dos Barbeiros?
A cidade, já se sabia, estava socialmente partida e agora é a vez de anunciar, como fez o Prêmio Rio Show de Gastronomia em suas entrelinhas, a mesa partida. A galinha caipira já era. O bife rolé com purê nem pensar. A língua com arroz está em falta faz tempo. Nenhum restaurante do Centro, celeiro fundamental de uma certa cozinha carioca, uma leitura popular do que trouxeram os portugueses e foi filtrado por índios e escravos, nada do que nos tem sido típico pasto e prazer consagrou-se no Prêmio.
Onde estão as estrelinhas de mérito glutão, senhoras autoridades tão compenetradas no uso do sorbet, que deveriam estar decorando o cabrito, alho frito e arroz com brócolis do Nova Capela?
Que cidade é essa que se faz blasé, pede um risoto de cevadinha com linguado a grenobloise, e esquece de se ajoelhar diante da lentilha garni do Bar Brasil na Mem de Sá?
Eu tenho como esporte urbano pescar restaurantes pelo Centro, caçar o que eles nos servem de História ao redor de seus pratos fartos e palitar os dentes com seus cardápios geniais. É aventura sem bússola. Os farejadores do Michelin, do Gault Millau e do Zagat não passaram por aqui com suas estrelas. Bato na porta e entro. Meu guia é o paladar cultivado na infância — e aqui abro travessão para agradecer a democracia lusitana que me cultivou ao azeite das sardinhas, ao bife de sangue das galinhas, ao alho nos miolos, ao charivari da morcela, ao sarrabulho étnico, ao cassoulet com paio, tudo regado ao vinho Dão. Quem passa por essa Coimbra do gosto, saúda o foie gras do Troigros, as trufas brancas do Gero. Sabe que são todos aparentados ao sabor exuberante do leitão à pururuca que enchia minha mesa infantil.
Ninguém pode fazer nada se em casa as crianças estão sendo educadas a miojo com ketchup. Nas ruas uma dessas autoridades dos arquivos culturais devia perceber que não só o que avista o olho é patrimônio. O paladar é memória também — e, como se viu pela opinião dos jurados do Prêmio Rio Show de Gastronomia, ninguém se lembra mais da peixada do Sentaí, das empadas da Lisboeta, do ossobuco do Senadinho e do pernil molhado que vem no sanduíche do Paladino.
No início do mês fecharam o Ficha, o alemãozinho da Teófilo Ottoni, e retiraram das nossas papilas gustativas o gosto forte do seu labskaus, um bolo de carne com ovos que alimentou a imaginação de várias gerações de cariocas. Será que ninguém percebe que é fato tão grave quanto roubarem um azulejo do Portinari no Palácio Capanema? Tão escandaloso quanto derrubarem um fícus do Glaziou no Campo de Santana?
Eu tenho fome de História e gostaria de continuar caçando meus restaurantes populares, de comida saborosa e barata pelas ruas do Centro, mas sinto que é esporte cada vez mais exótico e difícil de ser praticado. Os escritórios querem que seus funcionários voltem logo para o computador — e promovem o jogo rápido da comida a quilo. A bandidagem nas calçadas e a sujeira das ruas assustam — e deixam na Zona Sul os experts do Rio Show, protegidos ao doce do profiteroles farcies de glacê vanille et sauce chocolat do Garcia.
Se a memória afetiva na semana passada preservou para sempre as figueiras da Santa Luzia, urge que se crie um carimbo de memória gastronômica e conserve-se até a passagem do último furacão o que sempre nos foi gosto e língua com batata, civilização e miúdos de frango, carioquice e isca de fígado, patrimônio e bolinho de bacalhau.
O resto é a invasão bárbara do tomate seco e rúcula.

Um comentário:

Patrícia Merlo disse...

Esse texto é excepcional! de uma escrita deliciosa e com uma denúncia séria - comida é história e talvez tenha passado da hora de criarmos alternativas à preservação desse patrimônio de sabor e afeto!