O compositor Noel Rosa era, antes de tudo, um apreciador de cerveja. À mesa, problemas para mastigar surgidos ao nascer levaram-no a preferir sopas e caldos. Mas, a julgar pela letra do samba "Conversa de Botequim", ele também gostava de uma boa média com pão e manteiga.
Muito mais do que comer, Noel Rosa gostava de beber. Era cervejeiro - e dos bons. Às vezes amanhecia o dia abraçado à garrafa. Na época, bebia a Cascatinha, da Brahma, que hoje já não existe mais. E procurava convencer os parceiros de boemia dos poderes nutritivos da cerveja. Certa vez, foi encontrado de manhã com um copo da bebida e outro de cognac. "Francamente, Noel, logo cedo?", disse o amigo que o flagrou. O genial sambista não se abalou. Começou a discorrer sobre o valor nutritivo da cevada, para ele um alimento que valia por um almoço. "Está bem, mas e quanto ao cognac?", indagou o outro. A resposta de Noel veio de pronto: "Bem, como eu não sei comer sem beber, estou tomando esta dose de cognac para acompanhar a refeição". Gozador, espirituoso, o carioca Noel Rosa foi o mais importante compositor popular de seu tempo (1910-1937). Inovou ao mostrar não só o amor (visto de forma bastante amarga), mas as mazelas da vida: a fome, a bebida, a prostituição, os assassinatos e as mentiras.
Ao lado de grandiosos parceiros, entre os quais se destacavam Lamartine Babo, Cartola e Ismael Silva, subiu o morro para tornar o samba mais elaborado. Da sua querida Vila Isabel, bairro onde nasceu e morreu, à Tijuca de Lamartine, à Mangueira de Cartola, Noel circulava sempre desprendido para viver e contar o que visse, sem dó nem piedade. Solto na boemia, perambulava pelas ruas com os amigos fazendo galhofa. Uma das preferidas da turma era roubar o leite dos vizinhos, que chegava às casas pouco antes de clarear, assim como eles. Em uma das noitadas, Noel voltava para casa com Lamartine e propôs um café-da-manhã ao companheiro. Cada um segurava uma garrafa de cerveja na mão e eles decidiram substituí-las pelas garrafas de leite colocadas na porta do vizinho. Feita a troca, foram embora felizes, mas não sem antes deixar um bilhete: "Alimentem-se com a nossa cerveja, enquanto nos envenenamos com vosso leite".
Bebedeiras à parte, Noel enfrentava problemas concretos na hora de comer. Seu nascimento foi complicado por um parto que precisou da ajuda de fórceps, o que lhe rendeu uma paralisia no lado direito do rosto. "Por conta do problema no queixo, ele mastigava com muita dificuldade", diz o crítico de música João Máximo, autor da biografia de Noel ao lado de Carlos Didier. Sendo assim, sopas, caldos, purês, mingaus e líquidos em geral eram mais convenientes para sua dieta. "Havia em Vila Isabel uma sopa famosa, feita com o resto de uma porção de coisas, que os boêmios gostavam por ser generosa e barata", informa Máximo. Noel tomava igualmente um caldo forte na casa do amigo Cartola, depois de homéricos porres conjuntos.
Recebidos por Deolinda, então mulher do compositor mangueirense (citada na biografia como o "anjo da guarda da dupla"), eram tratados como crianças. A mulher lhes dava até banho. Para alimentá-los, ela preparava um caldo, feito com osso de tutano, fervido com tomate e cebola e engrossado com talharim. Segundo Deolinda, a receita "levantava até caixa-d'água". Com todos esses cuidados, era muito comum Noel dormir no barraco do amigo Cartola. Apesar da dificuldade física, nem só de líquidos vivia o magrelo Noel. O cantor Silvio Caldas gravou um depoimento dizendo que o amigo também era adepto do bife com fritas. "Talvez fosse o prato mais comum da época", especula Máximo. "Todo bom carioca apreciava um filé com fritas. O Silvio também preparava peixadas para Noel e tinha orgulho de suas receitas."
No tempo do ilustre sambista, muitos boêmios passavam horas a fio nas mesas dos cafés, cena retratada em seu antológico samba "Conversa de Botequim" (em parceria com Oswaldo Gogliano, o Vadico). "Seu garçom, faça o favor de me trazer depressa/uma boa média que não seja requentada/um pão bem quente com manteiga à beça", solicita a letra divertida. Mais adiante, faz uma ameaça marota: "Se você ficar limpando a mesa/não me levanto nem pago a despesa". Nesse momento, Noel faz uma clara referência aos garçons que queriam expulsar os fregueses do café. "Eles fingiam limpar a mesa para espantá-los, já que ficavam um tempão ali sem consumir", diz Máximo. "Hoje, ninguém tem mais tempo para isso. É uma pena, porque se perde o humor e a arte de fazer amizades." Mesmo tendo morrido prematuramente, aos 26 anos, vítima da tuberculose, Noel deixou um enorme acervo de criações, que não nos sai da memória, entre as quais vale lembrar "Último Desejo", "Dama do Cabaré", "Palpite Infeliz", "O Orvalho Vem do Campo", "Quem Ri Melhor" e "Com Que Roupa?". Concretamente, transformava em arte suas dificuldades, sem jamais perder o humor. "A mulher é o aperitivo que ajuda o homem a comer o prato indigesto da vida", escreveu ele em 1930.
2 comentários:
Luiz,
Noel é um gênio! E voc~e foi muito feliz em lembrá-lo. Aliás, a Vila só é a Vila por causa dele. È como Garrincha para o Botafogo ou Pelé para o Santos. Podia até ter existido o time, mas não seria a mesma coisa! Beleza pura! Silvio
Oi, Luiz, boa noite, bom dia!
Vi o seu comentário no Capaespada e fiquei curiosa. Vim visitá-lo e, que surpresa mais que agradável. Seu blog é poesia, futebol e cultura, tudo misturado com bom humor. Visitarei todos os dias, porque gosto de ler todos os posts, desde o primeiro. E falo mais que matraca, verá se tiver paciência para ler meus comentários.
Parabéns.
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