"O BOTAFOGO E EU
Que partilhamos defeitos e qualidades comuns, não há dúvida. Nos meus torneios, quando mais preciso manter os números do placar, bobeio num lance, faço gol contra, comprometo, tal qual o Botafogo, uma difícil campanha.
A mim e a ele soem acontecer sumidouros de depressão, dos quais irrompemos eventualmente para a euforia de uma tarde luminosa.
Sou preto e branco também, quero dizer, me destorço para pinçar nas pontas do mesmo compasso os dualismos do mundo, não aceito o maniqueísmo do bem e do mal, antes me obstino em admitir que no branco existe o preto e no preto, o branco.
Sou um menino de rua perdido na dramaticidade existencial da poesia; pois o Botafogo é um menino de rua perdido na poética dramaticidade do futebol.
Há coisas que só acontecem ao Botafogo e a mim. Também a minha cidadela pode ruir ante um chute ridículo do pé direito do Escurinho.
O Botafogo tem uma sede, mas esqueceu a vida social; também eu só abro os meus salões e os meus jardins à noite silenciosa.
O Botafogo é de futebol e regatas; também eu sou de bola e de penosas travessias aquáticas.
O Botafogo é um clube com temperamento amadorístico, mas forçado, a fim de não ser engolido pelas feras, a profissionalizar-se ao máximo; também sou cem por cento um coração amador, compelido a viver a troco de soldo.
Reagimos ambos quando menos se espera; forra-nos, sem dúvida, um estofo neurótico. Se a vida fosse lógica, o Botafogo deixaria de levar o futebol a sério, fechando suas portas; eu, se a vida fosse lógica, deixaria de levar o mundo a sério, fechando os meus olhos.
O Botafogo é capaz de quebrar lanças por um companheiro injustiçado pela Federação; eu aguardo a azagaia de uma justiça geral.
O Botafogo pratica em geral o 4-3-3; como eu, que me distribuo assim em campo: no arco, as mãos, feitas para proteger minha porta; na parede defensiva, meus braços, meu peito aberto, meus joelhos e meus pés; no miolo apoiador, trabalho com os pulmões e o fígado; vou à ofensiva com a cabeça, a loucura e o coração. Falta um, Zagalo. Em mim, essa energia sem colocação definida é a alma, indo e vindo, indistinta, atônita, sarrafeada, desmilingüindo-se até o minuto final.
O Botafogo é capaz de cometer uma injustiça brutal a um filho seu, e rasgar as vestes com as unhas do remorso; como eu.
O Botafogo põe gravata e vai à macumba cuidar de seu destino; eu meto o calção de banho e vou à praia discutir com Deus.
O Botafogo não se dá bem com os limites do sistema tático; tem que ser como eu, dramaticamente inventado na hora.
Miguel Ângelo é botafogo, Leonardo é flamengo, Rafael é fluminense; Stendhal é botafogo, Balzac é flamengo, Flaubert é fluminense; Bach é botafogo, Beethoven é flamengo, Mozart é fluminense. Sem desfazer dos outros, é com eles que eu fico, Miguel, Henrique, João Sebastião. Dostoiévski é botafogo, Tolstói é flamengo (na literatura russa não há fluminense); Baudelaire é fluminense, Verlaine é flamengo, Rimbaud é botafogo; Camões não é vasco, é flamengo, Garrett é fluminense, Fernando Pessoa é botafogo. Sim, Machado de Assis é fluminense, mas no fundo, no fundo, debaixo da capa cética, Machado, um bairrista, morava onde? Laranjeiras!
O Botafogo é paixão, é Brasil, é confusão; Campos Paulo Mendes é paixão, Brasil, confusão.
O Botafogo conquistou um campeonato esmagando inesperadamente o Fluminense de 6 a 2; uma vez, enfrentei um dragão enorme e entrei no castelo encantado.
O Botafogo, às vezes, se maltrata, como eu; o Botafogo é meio boêmio, como eu; o Botafogo sem Garrincha seria menos Botafogo, como eu; o Botafogo tem um pé em Minas Gerais, como eu; o Botafogo tem um possesso, como eu; o Botafogo é mais surpreendente do que conseqüente, como eu; ultimamente, o Botafogo anda cheio de cobras e lagartos, como eu.
O Botafogo é mais abstrato do que concreto; tem folhas-secas; alterna o fervor com a indolência; às vezes, estranhamente, sai de uma derrota feia mais orgulhoso e mais Botafogo do que se houvesse vencido; tudo isso, eu também.
Enfim, senhoras e senhores, o Botafogo é um tanto tantã (que nem eu). E a insígnia de meu coração é também (literatura) uma estrela solitária. "
Paulo Mendes Campos nasceu em 28 de fevereiro de 1922, em Belo Horizonte/MG, filho do médico e escritor Mário Mendes Campos e de D. Maria José de Lima Campos. Começou seus estudos na capital mineira, prosseguiu em Cachoeira do Campo (onde o padre professor de Português lhe vaticinou: "Você ainda será escritor") e terminou em São João del Rei.
Paulo Mendes Campos faleceu na cidade do Rio de Janeiro, no dia 1° de julho de 1991, aos 69 anos de idade.
Em 1999, foi homenageado pela Prefeitura da Cidade do Rio de Janeiro: tem seu nome uma pequena praça que fica no cruzamento das ruas Dias Ferreira, Humberto de Campos e General Venâncio Flores, no Leblon. Fonte: Velhos Amigos
Minha demonstração de fé ao clube da Estrêla Solitária que amanhã nos fará sorrir novamente. Vamos festejar acompanhando Beth Carvalho, aniversariante da semana, cantando:
"Esse é o Botafogo que eu gosto, esse é o Botafogo que conheço..."
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