4 de dezembro de 2005

Patrimônio, mesmo com o Ministro...

Patrimônio da humanidade


Sergio Martins

Patrimônio da humanidade, título concedido há pouco mais de uma semana pela Unesco, o samba deu uma demonstração categórica de sua importância como o mais popular dos ritmos brasileiros. Apesar da chuva - em alguns momentos muito forte, que castigou a cidade do Rio de Janeiro na tarde e na noite de sexta-feira - o Pagode do Trem, em sua décima edição, e comemorando o Dia Nacional do Samba, reuniu mais de 30 mil pessoas na Central do Brasil, no Centro, e movimentou a população do bairro de Oswaldo Cruz - e os vizinhos - levando às ruas adjacentes da estação mais de 70 mil pessoas que, com guarda-chuva na mão - ou sem ele -, cantaram e dançaram até o dia raiar.

Toda essa animação ficou por conta dos três palcos armados - além do da Central do Brasil - perto da estação de Oswaldo Cruz: Rua Vicenzia, esquina com Rua João Vicente (o mais animado e que contou com o maior número de populares, até por ficar num espaço mais descampado), Rua Atila Silveira e na Praça Paulo Portela (um pouco mais distante, mas não tanto que impedisse os foliões de se deslocarem de um para o outro para ouvir os grupos de sambistas que mais queriam). Além disso, mais 20 rodas de samba animaram os bares da região, nos dois lados da estação, reunindo conjuntos como Bip Bip, Pagode do Nelsinho, Raiz do Samba, Samba na Veia, Buraco do Galo, Tia Doca e muitos outros. Nos palcos, nomes como Monarco, Arlindo Cruz, Nelson Sargento, Walter Alfaiate, Nadinho da Ilha, Noca da Portela e Délcio Carvalho entre artistas.

A festa começou com duas alvoradas: na Pedra do Sal, com lavagem das escadarias da Igreja de Nossa Senhora da Conceição, na Praça Mauá, e cânticos aos orixás, às 6 horas. Uma hora depois, foi a vez da lavagem do busto do sambista símbolo do Pagode do Trem, Paulo da Portela, na praça que leva o seu nome, em Oswaldo Cruz, bem no limite com Madureira, outro famoso bairro entre os considerados berço do samba carioca. O show programado para o palco da Central do Brasil estava previsto para começar às 17 horas, mas atrasou, o que lembrou um samba de 1941, bem significativo da importância dos trens da Central do Brasil na vida dos trabalhadores: Patrão, o trem atrasou/Por isso estou chegando agora/Trago aqui um memorando da Central/O trem atrasou meia hora..., de Arthur Vilarinho, Estanislau Silva e Paquito. Só que, desta vez, quem atrasou um pouco mais de meia hora foi o ministro.

Protegido por guarda-chuva, assessores e seguranças, vestindo um impecável terno preto e gravata listrada, rabo-de-cavalo, o ministro da Cultura, Gilberto Gil, subiu ao palco acompanhado de Vó Maria, viúva de Donga, autor do samba Pelo telefone, considerado pelos historiadores o primeiro a ser gravado no Brasil, em 1917. Bem humorado, aproveitou a deixa e cantou Chove chuva, de Jorge Benjor, numa alusão à chuva insistente que decidiu cair na cidade durante a maior parte do dia. A pedido do público, encerrou sua participação cantando Aquele abraço, de sua autoria, tendo como coro afinado as mais de 30 mil pessoas que se aglomeravam no calçadão e no interior da Central do Brasil. Vindo de outro evento em homenagem ao Dia do Samba, na quadra da Mangueira, o ministro, assim que chegou à Central, antes de subir ao palco, falou da importância do Pagode do Trem:

- O samba, agora, não é mais simplesmente brasileiro. Desde o dia 26 de novembro que ele se tornou Patrimônio da Humanidade, título concedido pela Unesco. E este ano, quando o Pagode do Trem completa sua décima edição, não poderia deixar de vir, até porque é o primeiro a ser realizado depois que o samba passou a ser reconhecidamente internacional. Estamos comemorando bem mais do que o Dia Nacional do Samba, estamos comemorando o Dia Internacional do Samba. O pedido foi feito há pouco mais de um ano e a Unesco, na semana passada, reconheceu o samba como Patrimônio da Humanidade - afirmou.

Momentos antes de subir ao palco, Gil, embaixo de uma barraca coberta por um plástico branco, conversou com os sambistas, entre eles Vó Maria e Walter Alfaiate, e tentou pôr fim a uma velha discussão:

- O samba nasceu na Bahia, mas foi aqui no Rio que ele mais se desenvolveu - afirmou.

Walter Alfaiate sorriu, deixando no ar se realmente foi assim que aconteceu:

- O ministro está certo - disse, diplomaticamente, mas com um sorriso maroto no rosto.

Mas se o ministro atrasou pouco mais de meia hora, contrariando o samba da década de 40, os trens deixaram a Central do Brasil no horário, lotados de sambistas e foliões animados e comportados. Foram cinco composições, num total de 32 vagões, cada um com uma roda de samba: Trem 1 - Bip Bip, Velha Guarda da Império Serrano, Quilombo Pedro do Sal, Tia Doca, Manga Preta, Samba na Veia, Embaixadores da Folia e Cacique de Ramos; Trem 2 - Márcia Moura/República do Samba. Velha Guarda do Salgueiro, Negão da Abolição, Trem de Niterói/Nossa Arte, Pagode do Nelsinho e Butiquim do Martinho; Trem 3 - Tambor Brasil, Marquinhos de Oswaldo Cruz, Toque de Bamba, Velha Guarda da Vila Isabel, Grupo regente, Centro Cultural Carioca, Grupo Senzala e Tua Gessy; Trem 4 - Negras Raízes, Pagode do Claudinho, Família Diniz e Democráticos de Guadalupe; Trem 5 - Mestre Faísca, Voltar Pra Quê?, Galloti/Batuque na Cozinha, Tia Ciça, Pagode do Sambola e Clube do Samba.

Assim que os trens lotados de sambistas e foliões chegavam a Oswaldo Cruz, uma multidão esperava nos arredores das ruas em volta da estação. Apesar da chuva insistente, Marquinhos de Oswaldo Cruz, idealizador do projeto, cantou pelo menos uma música em cada um dos locais - palcos e rodas de samba:

- A última vez que Paulo da Portela cantou foi num circo armado exatamente no terreno que meu pai comprou anos depois. Ele saiu do show no circo passando mal e morreu em sua casa. Foi exatamente aqui, nesta esquina, que comecei a pensar, juntamente com Juarez Barroso, em realizar o Pagode do Trem.

Cercado de seguranças e assessores, Marquinhos se movimentou por caminhos pouco recomendáveis, durante a noite, para qualquer simples mortal. Saindo do palco do lado esquerdo da estação, rumo ao palco da Rua Atila Silveira, do outro lado, ele cruzou a linha férrea por uma passagem subterrânea, com uma passarela de pouco mais de 80 centímetros de largura, tendo do lado esquerdo uma parede de cimento e, do lado direito, um rio poluído, que, com a chuva, transbordou. Mas nem isso tirou sua disposição:

- Há algum tempo, se tirassem a placa da estação de trem, ninguém sentiria falta, o que seria, no mínimo, uma incoerência, até porque Oswaldo Cruz é um berço de sambistas tão importante quanto a Mangueira. O Pagode do Trem é um sucesso - concluiu, feliz, assim como os foliões, todos muito molhados, mas também alegres e felizes.

Um comentário:

Saramar disse...

Que beleza, hein, Luiz?
Nosso país é tão rico, tão belo, o povo tão honesto e trabalhador, criativo e alegre. Pena que os governantes façam tudo para estragar essa beleza toda.