14 de dezembro de 2005

A imprudência do roubo

"As autoridades do Rio de Janeiro se disseram horrorizadas com a queima do ônibus 350, e repudiaram o justiçamento dos supostos autores, assassinados por um bando rival. Só quem pode julgar é o Estado!, bradaram os homens da lei. No Rio, em Brasília e no resto do território, o discurso ético está tinindo. Na prática, está tudo pronto para a próxima imolação no trânsito e o próximo assalto ao Estado, mas com a verve afiada das autoridades será tudo muito menos doloroso.
O Brasil que se indignou com o mensalão está achando normalíssimo o drible na lei eleitoral. A regra do jogo é que não se podem alterar as normas da eleição menos de um ano antes da realização dela, para evitar pequenos (ou grandes) golpes políticos. Mas a cláusula que limita os direitos dos pequenos partidos, a obrigatoriedade de repetição das alianças federais nos estados, o que pode e o que não pode nos comícios – está tudo, enfim, em aberto a dez meses das eleições. Teve fraude com as camisetas da Coteminas? Proíbe camiseta na campanha. E assim vai caminhando o Brasil, como uma grande obra aberta, rabiscando sobre as coxas as regras do jogo com o jogo começado.
Pensando bem, é muito mais prático um sistema maleável como esse. Não deu tempo de alterar a lei no prazo determinado? Prorrogue-se o prazo. Chega de rigidez e intolerância. No dia da eleição, parte dos eleitores se atrasou na praia e compareceu às urnas depois do prazo? Prorrogue-se a votação até o dia seguinte. É um absurdo cassar um direito cívico de um cidadão apenas por ele ter desejado pegar um pouco mais de sol.
O país enojado pelo mensalão parece não ver o menor problema nessa licença poética sobre a lei eleitoral. Dois meses a menos, dois meses a mais, que diferença faz? O Brasil roubado por Delúbio e Valério assiste a um grande acordo para roubar um pouquinho o prazo eleitoral, roubar um pouquinho a lei, passando por cima dela à luz do dia, e ninguém se impressiona. Desta vez, nem os oportunistas da OAB aproveitaram o mote.
Deve ser por isso que o país está mais ou menos grávido da ética. Provavelmente é por isso que o ex-ministro Luiz Gushiken, o senhor dos fundos de pensão, declara com a maior tranqüilidade, sem qualquer salvaguarda retórica, que Delúbio Soares “cometeu uma imprudência ao mexer com caixa dois”, em entrevista a Helena Chagas. Não, não foi apenas uma incontinência verbal, ao estilo Lula. Gushiken estava fazendo, por incrível que possa parecer, a defesa deliberada da moral do companheiro tesoureiro. “Eticamente, sob o ponto de vista pessoal, Delúbio não tem essa mácula”, declarou o ex-ministro-chefe da Secretaria de Comunicação.
Se o esquema milionário de caixa dois montado por Delúbio não maculou a sua pessoa, e se um ex-ministro de Estado pode dizer isso em público com tranqüilidade e desinibição, está explicado por que um empurrãozinho na lei eleitoral não preocupa o país. Afinal, o que não mata, engorda. Para Luiz Gushiken, o crime de caixa dois cometido por Delúbio Soares foi uma distração. Enquanto isso, o Brasil segue discutindo alegremente a verticalização das alianças partidárias para 2006, distraidamente fora do prazo legal, com o concurso das opiniões e palpites de bacharéis e ministros do Supremo. Nem dá para entender por que implicaram tanto com o Severino Cavalcanti.
Esse Brasil meio ético, que vive com a paranóia de que tudo terminará em pizza, está conseguindo a proeza de discutir a moralização das eleições ao mesmo tempo em que as desmoraliza – por atropelar suas regras. Discute-se, fora de hora, entre outras medidas salvadoras, a proibição da distribuição de camisetas e o fim da reeleição. Tudo absolutamente inócuo enquanto as autoridades não aprenderem o mandamento revolucionário: cumprir a lei.
Trata-se de um princípio simples. No mundo dos traficantes de drogas, por exemplo, ele é bem disseminado e obedecido. Roubou moradores, aterrorizou nas “áreas protegidas”, queimou ônibus com gente dentro? Morre. Não é um modelo de civilidade, mas contrastado com autoridades que exercem a ética da garganta para fora, pode deixar uns e outros confusos. E quando a banda civilizada trata a lei conforme o gosto do freguês, crime e imprudência passam a ser, realmente, quase a mesma coisa."

Um comentário:

Anônimo disse...

Luiz, meu amigo, há certos artigos que deveriam ser reproduzidos e distribuídos nas esquinas. Este é um deles.
Beijo