12 de junho de 2006

Cântico negro

"Vem por aqui" — dizem-me alguns com os olhos doces
Estendendo-me os braços, e seguros
De que seria bom que eu os ouvisse
Quando me dizem: "vem por aqui!"
Eu olho-os com olhos lassos,
(Há, nos olhos meus, ironias e cansaços)
E cruzo os braços,
E nunca vou por ali...
A minha glória é esta:
Criar desumanidades!
Não acompanhar ninguém.
— Que eu vivo com o mesmo sem-vontade
Com que rasguei o ventre à minha mãe
Não, não vou por aí! Só vou por onde
Me levam meus próprios passos...
Se ao que busco saber nenhum de vós responde
Por que me repetis: "vem por aqui!"?
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Prefiro escorregar nos becos lamacentos,
Redemoinhar aos ventos,
Como farrapos, arrastar os pés sangrentos,
A ir por aí...
Se vim ao mundo, foi
Só para desflorar florestas virgens,
E desenhar meus próprios pés na areia inexplorada!
O mais que faço não vale nada.
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Como, pois, sereis vós
Que me dareis impulsos, ferramentas e coragem
Para eu derrubar os meus obstáculos?...
Corre, nas vossas veias, sangue velho dos avós,
E vós amais o que é fácil!
Eu amo o Longe e a Miragem,
Amo os abismos, as torrentes, os desertos...
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Ide! Tendes estradas,
Tendes jardins, tendes canteiros,
Tendes pátria, tendes tetos,
E tendes regras, e tratados, e filósofos, e sábios...
Eu tenho a minha Loucura !
Levanto-a, como um facho, a arder na noite escura,
E sinto espuma, e sangue, e cânticos nos lábios...
Deus e o Diabo é que guiam, mais ninguém!
Todos tiveram pai, todos tiveram mãe;
Mas eu, que nunca principio nem acabo,
Nasci do amor que há entre Deus e o Diabo.
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Ah, que ninguém me dê piedosas intenções,
Ninguém me peça definições!
Ninguém me diga: "vem por aqui"!
A minha vida é um vendaval que se soltou,
É uma onda que se alevantou,
É um átomo a mais que se animou...
Não sei por onde vou,
Não sei para onde vou
Sei que não vou por aí!
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José Régio, pseudônimo literário de José Maria dos Reis Pereira, nasceu em Vila do Conde em 1901.
Licenciado em Letras em Coimbra, ensinou durante mais de 30 anos no Liceu de Portalegre. Foi um dos fundadores da revista "Presença", e o seu principal animador. Romancista, dramaturgo, ensaísta e crítico, foi, no entanto, como poeta. que primeiramente se impôs e a mais larga audiência depois atingiu.
Com o livro de estréia — "Poemas de Deus e do Diabo" (1925) — apresentou quase todo o elenco dos temas que viria a desenvolver nas obras posteriores : os conflitos entre Deus e o Homem, o espírito e a carne, o indivíduo e a sociedade, a consciência da frustração de todo o amor humano, o orgulhoso recurso à solidão, a problemática da sinceridade e do logro perante os outros e perante a si mesmos.
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Conheci essa maravilha na interpretação magistral do Paulo Gracindo em Brasileiro: Profissão Esperança (clique para conhecer)
Quem não conhece, vale a pena garimpar porque existe em CD... é um musical com Paulo Gracindo e Clara Nunes (outros também interpretaram) sobre Antonio Maria e Dolores Duran.
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3 comentários:

Kafé Roceiro disse...

Muito bonito o poema, amigo!
Coloquei mais uma piada sua lá na roça! Um abraço,
Kafé.

Saramar disse...

"Eu amo o Longe e a Miragem,
Amo os abismos, as torrentes, os desertos..."

Luiz, meu surpreendente amigo, isso é tão lindo, o poema inteiro, a liberdade imensa e o destemor que dela nasce, que dá uma vontade de ficar feliz por saber que podemos ser assim, basta ter coragem.
Obrigada.

Beijos

Anônimo disse...

Caro Luiz, se você pudesse imaginar como procurei por este poema e há quanto tempo... Não faz idéia da alegria que senti ao encontrá-lo. Aquiri o LP em 1984 através de um amigo que achou numa loja de sebo em São Paulo, e fiquei apaixonada de cara por ele, mas o poema escrito eu não tinha. Muito obrigada.
Grande abraço,
Cleo