17 de junho de 2006

História...

O Cruzeiro - 3 de outubro de 1964

Carta aberta ao Presidente da República
Rachel de Queiroz


Senhor Presidente:
Uma grande mulher brasileira, D. Maria Celeste Flôres da Cunha, acaba de me escrever uma longa carta, que tomo a liberdade de resumir para o Presidente, porque, suponho, os ouvidos bons de escutar a saga dos que lutam pelo menor abandonado, no Brasil, são os seus e não os desta sua criada, que nada pode fazer por coisa nenhuma, senão clamar.
Conta D. Maria Celeste que, no comêço da década de 50, como presidente do Departamento de Ação Social da UDN, teve que vistar o Serviço de Assistência a Menores - o famigerado SAM -, e de lá saiu prêsa de profundo horror. Movimentou amigos, contou o que vira, solicitou ajuda do nosso grande e saudoso Odilon Braga; e Odilon se encarregou de preparar um projeto à Câmara, propondo criação de órgão nôvo, já que, no consenso geral, o SAM se revelava irrecuperável. Formou-se, então, uma equipe que se pôs a estudar sèriamente o problema e começou a agir. Dificuldades de todos os lados. Crise política. Queda de Getúlio, nôvo govêrno Café Filho nomeia para diretor do SAM a Paulo Nogueira Filho, já conhecido pelo seu interêsse ante o problema do menor. E Paulo se apavorou com o que viu, e escreveu o livro bem conhecido de todos que se embrenham nesse labirinto: “Sangue, Corrupção e Vergonha”, onde relatava o que encontrou no SAM. Ajudado então por Prado Kelly, Paulo Nogueira elaborou um anteprojeto de lei que extinguia o malfadado Serviço e o substituía pelo Instituto de Assistência ao Menor (INAM). Em cinco dias estava o projeto na Câmara! Ia haver o milagre - mas o que houve foi novembro de 55 e o “retôrno” do General Lott. Parou tudo, sumiu o projeto.
Nessa altura a Ação Social Arquidiocesana (ASA) resolveu entrar na briga. Formou uma equipe excelente, de gente provada no assunto - D. Anita Carpenter, Guiomar Mancini, a própria Maria Celeste e Prado Kelly. Foi essa equipe desenterrar o projeto desaparecido na Câmara. Modificaram-no, atualizaram-no, e o projeto voltou ao Parlamento. Os maiores nomes da Câmara o apoiaram, entusiasmaram-se com êle - mas aí, estava-se em plena era Juscelino. Interferiu a política, tumultuou-se o projeto, deram nome diferente ao futuro órgão (já agora seria o CONSELHO DO BEM-ESTAR DO MENOR) e, sob diferentes pretextos, pararam com tudo.
O grupo da Asa, entretanto, não desanimou e, bem ajudado por gente de bom coração e boa cabeça, teimou em furar o bloqueio oficial. O SAM vivia um dos seus piores momentos. Mas o Senhor sabe, Presidente, como é difícil fazer o Congresso andar quando não está em jôgo algum interêsse grande da maioria - e aqui no Brasil as maiorias parece que não consideram o problema do menor como de interêsse nacional! Afinal, o grupo obstinado conseguiu desencantar o projeto Kelly (o do INAM); Pedro Aleixo tomou a si apresentá-lo; mas vieram as eleições, e pouco depois morreu Odilon Braga, um dos comandantes do movimento pró-menor. Parou tudo outra vez.
Govêrno Jânio Quadros: nôvo escândalo nacional com revelações sôbre o SAM, inquéritos, o Presidente manda que se estude um órgão para substituir a horrenda instituição. Na comissão nomeada para êsse fim entram dois veteranos do combate - Pedro Vieira e Paulo Nogueira Filho. E a comissão recomenda ao Presidente que envie ao Congresso aquêle dito projeto, já pronto e perfeito... nas logo depois Jânio renuncia.
Serenada um pouco a confusão daquela fase tumnultuosa, foi-se desentranhar na Câmara o projeto do menor - de nôvo desaparecido! Jango, apesar de tudo, se interessou e, depois de nomear para diretor do SAM Eduardo Bartlett James, um dos lutadores da campanha, nomeia o mesmo James presidente de nova comissão destinadas a estudar o problema do menor. Tudo parecia, afinal, sanado, e os cruzados se encheram de esperança.
Foi então que, num assalto noturno, dois meninos, duas crianças matam outro menino - o môço herói Odylio Costa, neto. O confôrto único do pai, naquela hora de grande desgraça, foi dedicar-se à solução do drama do menor abandonado, para que tragédias como a sua não se repetissem - e assim a batalha em prol do menor ganhou um dos seus mais preciosos recrutas. (Já nela estavam empenhadas outras grandes figuras, como D. Cândido Padim e Helena Iraci Junqueira, nome conhecido internacionalmente no campo da Assistência Social). Recrudesceu o trabalho. A Comissão vivia a correr de Brasília para o Rio; João Mangabeira, Ministro da Justiça, pràticamente oficializou o velho grupo de combatentes, chefiados por James. Trabalhavam dia e noite, literalmente, e de graça, claro. Mas então morreu Bartlett James, outro! E João Mangabeira demitiu-se, sendo substituido por Abelardo Jurema.
A essa altura, o grupo no poder tinha outros gatos a açoitar, - e desinteressou-se do menor abandonado. Voltaram os teimosos à Câmara. Pedro Aleixo, líder da Minoria, releu o projeto, que as vicissitudes sucessivas iam aperfeiçoando cada vez mais, e prometeu dar-lhe andamento sem mudar uma vírgula; assim o fêz, mas aí Deus Nosso Senhor e os chefes militares suscitaram o 31 de março de 64 - e Jango caiu.
Assumiu o Ministério da Justiça essa flor do gênero humano que é o mineiro Milton Campos. Nôvo alvorôço dos cruzados, nova busca do projeto que, na Câmara, mais uma vez tinha desaparecido! Milton arranjou nova cópia, adotou o projeto sem alterações, ficou tudo pronto... e então o projeto parou. Agora só pode andar se receber uma palavra do Ministro da Fazenda. É só uma linha e meia do projeto que precisa da aprovação do Dr. Bulhões. - uma linha só atrasando solução de tal gravidade. (Trezentos mil menores só no Estado da Guanabara!) Odylo e D. Maria Celeste foram ao Ministro, que os ouviu e disse sim (pouco depois Odylo teve também o seu enfarte do qual se recupera, graças a Deus) - o Ministro disse sim, mas o projeto está parado, sumido sabe-se lá em que assessoria, falam até que no Ministério do Planejamento.
E, Presidente, assim termina D. Maria Celeste a sua corajosa carta: “Cheguei a esta conclusão: a maior fôrça dêste País, desde 1941, chama-se SAM. Tudo se altera, menos a crescente desgraça da criança abandonada. E entretanto creio que nada há mais trágico do que vemos crianças (são internadas em geral aos 7 anos), que estão sob a guarda do Estado, serem transformadas em assassinos”.
Presidente, pelo amor de Deus, ouça D. Maria Celeste e os seus dedicados companheiros de luta. Mande apressar as tecnicalidades, os vagares burocráticos - o senhor mandando, tudo corre! Aliás esta carta é só um lembrete - ninguém precisa lhe dar lições de patriotismo e amor ao bem público. E assim, depois de lhe contar o caso, sinto-me tranqüila.
Confio e espero.
R. de Q.





Para reflexão dos candidatos atuais...

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