8 de outubro de 2005

O Almoço

O almoço do Círio à moda antiga: tradição e requinte na panelaOs dias que antecedem a grande procissão deixam Belém mais agitada. A cidade ganha um aspecto novo, cheia de turistas e com muitas atrações para apresentar a quem vem passar o Círio. Se nas ruas o movimento é grande, nas cozinhas o corre-corre não é menor. Para quem pode manter o costume de colocar na mesa o tradicional almoço do Círio – que tem tudo a ver com a fartura que a natureza amazônica oferece – dois pratos não podem faltar: maniçoba e pato no tucupi. Prepará-los não é tarefa das mais fáceis e é preciso muita atenção a detalhes aparentemente insignificantes, mas que deixam a comida com um gostinho especial.
Em torno da alegria de reunir familiares e amigos para uma refeição, no segundo domingo de outubro, cresce a tradição do almoço. Enquanto a berlinda não passa,os anfitriões costumam servir salgadinhos, doces e bolos, acompanhados de refrigerantes, sucos ou bebidas alcoólicas. Na hora do almoço, que não tem sido, nos últimos anos, necessariamente, meio-dia, todos aguardam pelo pato no tucupi e pela maniçoba. Para recuperar a maneira como as cozinheiras mais antigas, aquelas do “tempo da vovó”, faziam esses pratos, basta acompanhar os passos da preparação.
Maniçoba: o aspecto estranho esconde um sabor essencialmente amazônico

Quem nunca viu uma travessa com maniçoba, ou um panelão fervendo, não haverá de ter boa impressão. O aspecto visual não é dos melhores. Mas o sabor... humm!!! É inesquecível. O preparo não chega a ser difícil, mas fazer maniçoba dá muito trabalho. O ideal seria voltar no tempo e cozinhar em panelões de barro sobre fogão a lenha. Como é complicado recorrer a uma época mais romântica na cozinha, se a modernidade oferece comodidades, melhor é esquecer a panela de barro e cair na real.
A maniva, retirada da mandioca ou da macaxeira, deve ser moída (sem os talos, por favor!) até três vezes. Comprá-la précozida é meio caminho andado para apresentar prato mal feito. Maniva na panela, é hora de colocar água e toicinho cru e deixar ferver por sete ou oito dias, até que, de verde, as folhas moídas enegreçam.
Quando for secando, deve-se acrescentar mais água e mais toicinho, para que a gordura vá ganhando espaço. Após uma semana de fervura (algumas famílias desligam o fogo à noite e, pela manhã, reiniciam o trabalho. Quem usa fogareiro, pode dormir sem preocupação), é chegada a hora de dessalgar as carnes. Primeiro devem ser colocadas as que custam mais a amolecer: bucho, mocotó, orelha e rabo de porco, além do charque, do paio, das costelas e dos chouriços.
Quem gosta de pimenta-do-reino e alho pode usar. Está pronta a maniçoba, que deve ser servida com arroz branco (quanto mais branco melhor!) ou farinha. Uma pimentinha sempre vai bem.O chef de cozinha moderno precisa observar as folhas: se forem de mandioca, o tempo de fervura dobra. Há quem coloque uma cuia média de puro leite de Castanha do-Pará novinha. A castanha antiga contém muito óleo e não serve. Outro cuidado de quem vai comer maniçoba preparada fora de casa diz respeito à cor: quanto mais verde estiver, menos tempo passou no fogo.
Isso significa riscos para a saúde. Quanto mais preta, tanto mais gostosa e menos danos poderá causar aos intestinos. Sobretudo aos mais sensíveis, que não conhecem a preciosidade do sabor.
O pato no tucupi tem lugar especial no almoço paraense do dia do Círio
Outro prato que desperta fortes emoções é o pato no tucupi. Prepará-lo com requinte e acerto exige prática e cuidados especiais. Talvez mais especiais que os empregados para cozinhar a maniçoba. Primeiro passo é esquecer o chester, o peru e o frango, indignos substitutos do pato-cada-vez-maiscaro.
Como a receita é de pato, fale-se apenas dele.Primeiro passo é encontrar um patarrão (ou dois, ou três). Quem tem parente no interior até consegue. Quem depende das criações locais, vai precisar andar mais. Um aviso: pato congelado não combina com esta receita. Com a ave em casa, é hora de matá-la. Em vez de sacrificar o bicho, cortando-lhe, impiedosamente, o pescoço, o certo é depenar um pouquinho essa parte do corpo e, com uma seringa enfiada na jugular, ir retirando o sangue lentamente. Dá trabalho, mas é o jeito.
Para quem for impaciente há outro conselho: cortar um pedacinho do pescoço, até que vá perdendo as forças e morra sem violência. Quem sabe fazer pato, garante que esse tipo de sacrifício impede que carne seja “envenenada” por toxinas.
Com o pato morto, o trabalho a seguir consiste em depená-lo e tirar as tripas e os miúdos. O mau cheiro da proximidade do “sobre” também deve ser excluído,lavando a ave apenas com água. Limão nem pensar: endurece a carne. Realizada esta operação, o pato deve ser enxuto e, se ainda restarem penas renitentes, retirá-las com fogo. Os temperos são sal grosso, alho e pimentado-reino. A recomendação de usar vinho ou vinagre deve ser considerada uma bobagem, assim como envolver o pato em tiras de bacon. Esses sabores entram em violento conflito com o do tucupi. Quem tem tucupi, pode se dar ao luxo de dispensar o resto. Quanto mais tempo passar descansando, numa assadeira, (de barro, de preferência) melhor. Nahora de ir para o forno, o ideal é assar,utilizando apenas a gordura que escorre.
Quando estiver dourado e com aquele cheirinho delicioso, nada de colocá-lo para esfriar sobre o fogão. O certo é “esquecê-lo” no forno até que fique frio. Mudanças de temperatura são ótimas para ressecar a carne. O tucupi é um capítulo à parte. Como quase ninguém tem tempo para tirar tucupi em casa, o jeito é comprá-lo na feira ou na casa das senhoras que ganharam fama, em Belém, vendendo tucupi de boa qualidade. É bom preferir uma “freguesa” que não adicione anilina para deixá-lo mais amarelo.
Por incrível que pareça, ele deve ficar clarinho na parte de cima e, em baixo, ter uma espécie de concentrado. Tucupi na garrafa, com amarelo intenso, o tempo todo, é tucupi adulterado. Não serve. Para fervê-lo, convém adicionar alho e chicória. Para mexer, mais original (e tradicional) é preparar uma “vassourinha” de alfavaca. O ritual de preparação não termina aqui. O pato deve ser cortado em seis pedaços, que serão adicionados ao tucupi. Depois, acrescenta-se o jambu, que foi cozido, previamente, no vapor e não na panela.Dá mais trabalho, é verdade, mas tem que ser assim para ficar especial. O pato dorme sobre o fogão (não na geladeira) e, na manhã seguinte, antes de sair para ver o Círio passar ou acompanhar a procissão, a cozinheira dá uma última fervura. Depois, é esperar a hora do almoço e fazer um pirão de farinha, tucupi e pimenta para acompanhar esse quitute raro, talvez o mais saboroso da cozinha paraense.

Um comentário:

Anônimo disse...

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