Setenta anos após sua morte, ocorrida a 24 de junho de 1935, em acidente de avião na Colômbia, o genial cantor, compositor e ator Carlos Gardel, pseudônimo de Charles Romuald Gardes, continua a ter o carisma imaculado. Arrasta multidões ao túmulo no cemitério La Chacarita, em Buenos Aires, onde o sepultaram após quatro velórios solenes, seus discos são vendidos aos milhares, encantando os fãs de todas as idades com uma voz de impostação natural e timbre caloroso, jamais igualada por outro intérprete do tango. Mas, sobretudo, ainda causa polêmica. Não se chega a um acordo sobre o ano e o local de nascimento de Carlitos, como o público o chamava afetuosamente. Os argentinos, que lhe concederam a nacionalidade, afirmam ter ocorrido em Toulouse, na França. Seria filho de Berta Gardes, uma mulher de vida airada que desembarcou com o garoto em Buenos Aires, no ano de 1893. Os uruguaios afirmam que o cantor veio ao mundo em Taquarembó, no norte de seu país. Seria filho do líder político local Carlos Escayola e de Maria Lelia Oliva, então com 13 anos. Logo após o nascimento, garantem eles, foi entregue a Berta Gardes, uma francesa que se prostituía numa mina de ouro vizinha. Argentinos e uruguaios exibem documentos comprobatórios. Impossível saber de que lado se encontra a razão.
O fato é que Gardel era portenho por adoção e esteve artística e sentimentalmente mais ligado a Buenos Aires que a qualquer outra cidade. Com base na capital argentina, viajou pela Europa e Estados Unidos, mas sempre voltou com prazer à cidade adotiva. Nos 20 anos anteriores a seu desaparecimento, foi aclamado por multidões e popularizou internacionalmente o tango. Aprendeu a interpretá-lo na zona boêmia, na qual passou a juventude, e difundiu seu arrebatador compasso binário simples, o andamento moderado e sincopado, pelo mundo afora. Gravou 1 500 discos de vinil, compôs em parceria com letristas cerca de 30 composições antológicas, entre as quais "El Día Que Me Quieras" e "Por una Cabeza", "Mano a Mano" e "Mi Buenos Aires Querido", atuou em 20 filmes, entre mudos, sonoros e curtas-metragens. Boêmio incorrigível, mulherengo contumaz, era também um notável sibarita - palavra de origem grega usada para designar uma pessoa dada à vida de prazeres. Fumava bastante - sua enorme estátua de bronze, no cemitério La Chacarita, apresenta-o com um cigarro na mão; bebia sem culpa, especialmente champagne; e se entregava ao prazer da comida. Não por acaso, vivia em litígio com a balança. Em 1916, chegou a pesar 118 quilos. Submetendo-se a uma dieta severa, à base de iogurte, fazendo ginástica sueca e correndo no Parque de Palermo, em Buenos Aires, conseguia emagrecer e voltar à antiga forma.
Revelava grande apetite, sobretudo diante dos amados pratos italianos. Aos domingos, dirigia-se à casa do amigo Guillermo Barbieri, na capital argentina, para saborear ravioles caseros preparados pela mulher do anfitrião. Eram feitos do jeito que ele gostava, ou seja, recheados com carne de vitelo. Em Nova York, em 1934, durante a filmagem de El Día Que Me Quieras, inspirado na composição homônima, comia os spaghetti feitos por dona Asunta, mãe de um coadjuvante, bandoneonista de talento promissor, chamado Astor Piazzolla. Cozinheira de mão-cheia, a massa da senhora colecionava apreciadores. Após a refeição, Piazzolla, que ainda não se dedicara integralmente ao tango, tocava músicas eruditas. Certa vez, tentando acompanhar Gardel, ouviu do cantor uma crítica desestimulante: "Garoto, tocando bandoneon és um fenômeno, mas no tango és um galego". Em Buenos Aires, a mulher de José Rozzano, com o qual formou dupla por 13 anos, preparava-lhe risotto de funghi e açafrão. O cantor se sentia em casa, até porque namorou Cristina, filha do casal. Paralelamente, apeteciam-lhe certas receitas típicas argentinas. Em 1932, enquanto rodava em Paris o filme Melodía de Arrabal, convenceu o cozinheiro francês a preparar-lhe um puchero criollo, o tradicional cozido dos pampas. Costumava igualmente pedir esse prato no El Tropezón, da capital argentina.
O pesquisador argentino Carlos Hugo Burgstaller, no Boletín Tango y Cultura Popular (Volume IV, Buenos Aires, 2003), arrola os restaurantes favoritos de Gardel e os pratos dos quais gostava. No El Tropezón, o cantor sentava invariavelmente na mesa de número 48, a conselho de seu motorista particular, El Aviador. O empregado recebera esse apelido por apertar demais o acelerador do carro. El Aviador orientava sua vida pelos ensinamentos do livro napolitano La Molfetta, que relacionava números, tragédias e sonhos. "Assim, por exemplo, se passava na frente de um incêndio, parava o automóvel, pegava o livro guardado cuidadosamente debaixo do banco e começava a análise a partir do número a que correspondia", escreveu Burgstaller. Lendo as especulações da obra, El Aviador atribuiu o 48 a Gardel. Além de freqüentar o El Tropezón, o cantor aparecia no El Conte, o mais luxuoso e caro restaurante da cidade, em companhia de Rozzano e outros três companheiros. Ali, pedia faisão ao Calvados (um dos mais finos destilados do mundo, feito na região da Normandia, com maçãs). Afinal, se era realmente francês, como querem os argentinos, tinha a obrigação de apreciar alguma receita da terra natal.
Revista Gula - Matéria publicada na edição 154 - Agosto/2005
Texto J. A. Dias Lopes
Fotos Luiz Henrique Mendes
2 comentários:
Não acredito!!!! De novo? cadê meu comentário que estava aqui (ai, ai, o blogspot comeu). Ainda bem, porque falei muitas bobagens.
Mas, não tem jeito, vou falar tudo de novo.
Simplesmente, sou apaixonada pelo Gardel. E esse post, tão perfeito, me fez muito bem. Li umas 30 vezes para absorver esses detalhes todos.
E a música que mais amo? El dia que me quieras? Maravilhosa. Fui ouví-la, depois de ler seu post.
E o Ator Piazolla? Celeste Astor Piazolla.
Hoje foi feriado aqui e depois do seu post, meu dia foi só de tangos.
Obrigada, hoje foi a segunda feira dos sonhos com essas obras-primas.
Beijos
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