19 de novembro de 2005

'Fala sério!'

O projeto 'Luladepelúcia', que o artista plástico Raul Mourão expõe a partir de hoje no Rio, brinca com a imagem do presidente e leva a arte contemporânea à boca do povo
Cleusa Maria - Caderno B do Jornal do Brasil
Se depender dos feirantes Ailton Ribeiro, 37 anos, duas filhas, morador de Bangu; Paulo Roberto Vieira, 30 anos, morador de Irajá; ou Ana Cristina Pereira Vasconcelos, 33, também de Bangu, o Luladepelúcia criado pelo artista plástico Raul Mourão vai continuar dependurado na parede da Lurixs Arte Contemporânea, em Botafogo, até cansar. Não tanto pelos preços salgados dos múltiplos para quem fatura uma média de apenas R$ 600 por mês – cada um custa R$ 1 mil. Nem tanto também por não terem apreciado a obra, que consideraram “engraçada”. Mas porque, para eles, três entre os 52 milhões 790 brasileiros que elegeram o presidente da República, em 2002, a imagem de Lula já não parece deslumbrante como outrora.
– Ele foi uma ilusão – reclama o vendedor de panos de prato Paulo Roberto, que tem o apoio imediato da vendedora da barraca de biscoitos amanteigados Ana Cristina:
– O Lula era um herói que virou um brinquedo “treque-treque”.
Se tivesse ganhado um boneco de presente quando o presidente foi eleito, ela o teria guardado no seu quarto de dormir com as mordomias do ar-condicionado. Já o parceiro de banca, Ailton Ribeiro colocaria o múltiplo na estante da sala, para impressionar as visitas. Atualmente, se ambos tivessem um Luladepelúcia o destino não seria tão amável com o presidente.
– Depois dessa crise, eu dava para minha filha de 3 anos brincar, ela gosta de arrancar cabeça de boneca – diz Ailton.
Ana Cristina completa:
– Eu botava na casinha do cachorro, o meu vira-latas Lulu.
Não seria muito diferente na casa do carregador de feira Adilson Hilário dos Santos Júnior, 12 anos, morador do Morro Dona Marta.
– Antes, eu enfeitaria a parede da sala com ele. Agora, teria de jogar fora, minha mãe não ia deixar um Lula dentro de casa – diverte-se o garoto.
Isso confirma as palavras do criador da obra, Raul Mourão, na apresentação do trabalho. Quando pensou o projeto, em 2003, ele se baseava na banalização da imagem do presidente idolatrado pelo povo. Sem intenção, acabou realizando uma obra que usa o humor para falar da crise política: “Luladepelúcia é um brinquedo assassino”, escreveu o artista em suas anotações iniciais.
O povo assina embaixo. Ao serem apresentadas ao cartaz da exposição, que reproduz a cara de 16 múltiplos, três alunas do terceiro ano do Colégio Carmela Dutra – em visita pedagógica à Escola de Artes Visuais do Parque Lage – reagiram como se fosse piada. Juliana de Magalhães, 19 anos, petista decepcionada e colecionadora de ursos de pelúcia, foi rápida na percepção da idéia do artista:
– Ele parece fofinho. Todo mundo acha que bicho de pelúcia é fofo. Mas nem tudo o que parece é. Essa obra é uma grande ironia.
A estudante Daiane Xavier, 19 anos, colega de turma e também dona de uma coleção de 25 bichos de pelúcia, aproveita a deixa.
– Mas se o brinquedo fosse feito hoje, o material deveria madeira – ironizou, contando que tentou convencer o pai a não votar no Lula, sem sucesso, porém.
Nem Juliana, nem Camila Freitas, 16 anos, da mesma turma, queriam ganhar um Luladepelúcia. Mas Daiane, sim:
– Eu queria para poder descarregar minha raiva nele. Fala sério... Lula!
De passagem pela Rua Paulo Barreto, carregando Ana Clara ao colo e segurando Leonardo de 3 anos pela mão, a mãe Graciane Sousa Silva, dona de casa, 27 anos, disse que daria o múltiplo de Raul Mourão de presente para o filho.
– Tenho uma simpatia por ele (Lula).
O pequeno Leonardo, por sua vez, agarrado ao boneco, não entendia bem se era uma promessa real ou apenas uma pegadinha. A cada pergunta que lhe era feita (se gostara do boneco, se sabia quem era?), respondia:
– Esse? Esse?
Dentro da galeria, que ainda não abrira a mostra na tarde de quinta-feira, Marcela Carrion, 19 anos, estudante de Direito e freqüentadora de exposições de arte no Centro Cultural Banco do Brasil, era uma espectadora privilegiada. Viu a instalação antes até dos convidados da inauguração de hoje.
– É um trabalho bem interessante. Pode ser visto por dois aspectos. Tanto se refere à idéia que todos temos na cabeça, a de que o Lula está na mão dos outros, como também por esse lado fofo dos bichinhos de pelúcia. Bem ou mal, o presidente continua sendo um símbolo e sua imagem está espalhada pelo Brasil – refletiu a estudante ainda hoje petista.
Privilegiados como Marcela só mesmo alguns dos comentaristas políticos mais incensados do país, que receberam um múltiplo, antes de qualquer colecionador, como estratégia de divulgação da mostra carioca. Entre eles estão os jornalistas Hélio Gaspari, de O Globo, e Diogo Mainardi, da Veja, que fez uma coluna inspirado no boneco.
E os artistas plásticos, o que dizem do atual trabalho de seu contemporâneo Raul Mourão? Professores da escola de Artes Visuais do Parque Lage – onde Raul estudou – o pintor Chico Cunha e o performático Bob N analisaram o Luladepelúcia. Com a palavra, Chico Cunha:
– O interessante do trabalho é justamente o fato de ele ter sido concebido no contexto Lulinha Paz e Amor e apresentado no extremo oposto, do Lula quase bonequinho de vodu, um Judas. É uma brincadeira interessante que tomou força e ganhou outra leitura, uma leitura amarga – assinala Chico – A figura do presidente, mais ou menos como o Chucky do filme, é um brinquedinho assassino.
Bob N diz que o projeto Luladepelúcia é um trabalho muito feliz e bem “sacado” já que o presidente (tão admirado por ele no tempo de sindicalista) se revelou, segundo ele, uma imagem a ser usada.
– De bichinho de pelúcia ele se mostra como está na realidade: uma figura ilustrativa. Na verdade, o Lula já não é tão real. Desde a época da eleição é um fantoche de uma encenação. O que o Raul fez ao usar o brinquedo é quase que uma bem-sacada redundância. Não estou chamando a obra de redundante. O que quero dizer é que o artista não fez uma subversão, não precisou fazer uma grande manobra para mostrar o que não se está vendo – arrematou Bob N.

O suvenir da crise
O criador da série Luladepelúcia, o artista plástico Raul Mourão, carioca de 38 anos, é uma das boas revelações da geração 90. Ele trabalha com desenhos, esculturas, vídeos, fotografia, performances e instalações e vem compondo um repertório com ênfase em elementos visuais deslocados da paisagem urbana para o espaço da arte (referências a botequins, sinalização de obras públicas, as grades que cercam a cidade).
Raul foi um dos fundadores, junto com Ricardo Basbaum e Eduardo Coimbra, do grupo Agora-Agência de Organismos Artísticos, com o objetivo de ampliar a produção e a circulação da arte contemporânea no Rio. A sua atual mostra na galeria Lurixs, em Botafogo, é composta por uma instalação que reúne mais de 100 bonecos do presidente, projetados por ele em três dimensões e encomendados a uma fábrica paulista de bichos de pelúcia. Além dos múltiplos, a exposição mostra o projeto em 3D, assim como um conjunto de desenhos a grafite a quatro mãos com Carlos Vergara, Luiz Zerbini, Barrão, Lenora de Barros, Marcos Chaves e Fábio Cardoso. Os Lulas serão vendidos a R$ 1 mil a peça e em caixas de 10 e 20 bonecos, custam R$ 15 mil e R$ 30 mil respectivamente.
-Nas primeiras anotações do trabalho, em dezembro de 2003, você se propunha a ''fazer um Lula de pelúcia, entregá-lo à população deslumbrada e deixar ou esperar o homem trabalhar''. Mas para esta reportagem, fez ressalvas à saída de um dos múltiplos da galeria para ser apreciado pelo público comum. Por quê?
- O contexto deste trabalho é o espaço da arte, daí eu não querer deslocar só uma das peças. Na verdade, a idéia é que se veja o conjunto, montado como uma instalação na galeria.
- Uma queixa habitual dos artistas é de que o público não freqüenta mostras de arte contemporânea, talvez até por ter dificuldades de entender a proposta dos trabalhos. Como você vê o Luladepelúcia nesse quadro?
- Evidentemente, esse é um trabalho com potencial de comunicação alto. Mas realizei outros projetos com a mesma característica. Já venho trabalhando esta questão, como fiz em A grande área, uma escultura de dimensões reais com a imagem de um jogo de futebol mostrada na Bienal do Mercosul, há duas edições. Também busquei neste projeto, intencionalmente, a comunicação direta com o espectador.
- O Lula idolatrado de quando você iniciou este projeto não existe mais. A imagem do presidente sofreu um desgaste brutal. Como a mudança do contexto real interferiu no trabalho?
- A crise e os acontecimentos políticos recentes ampliaram as leituras possíveis e transformaram o personagem. Me lembrei disso pensando no filme do João Moreira Salles, Entreatos, que vi de novo outro dia. E aí vi um outro filme. A mudança de contexto enriqueceu as abordagens do meu projeto e como artista acho que ele se realizou de forma mais completa. Já no primeiro momento, eu tratava com ironia a massificação da imagem de um ídolo. O Lulinha-paz-e-amor já era um personagem criado pelo marketing político. A figura do Lula, hoje, é a do presidente omisso, é a imagem da frustração de todo um país. Vivemos a pior crise brasileira, pior até do que a do Fernando Collor, não é?
- Você votou no Lula?
Votei, mas isso não vem ao caso. O que interessa é falar do trabalho e Luladepelúcia tem esse caráter político, que dialoga, por exemplo, com o humor das obras de artistas como Maurizio Catalan e Jeff Koons. Ou, para citar os brasileiros, Nelson Leirner e os engajados dos anos 60.
- A aproximação com o real é uma preocupação sua?
- Às vezes, o trabalho parte do ateliê para a rua, outras vezes do lado de fora para o ateliê. Eu diria que a gente atua entre o documentário e a ficção.
- Você acredita que o público comum vai entender o Luladepelúcia como obra de arte?
- Espero que sim. Mas o artista não pensa no público, está preocupado com as questões internas da obra. Ninguém sabe o que o público vai pensar.
- E qual é a questão interna do Luladepelúcia?
- É o suvenir oficial da crise. É isso que eu quero marcar.
- E se os camelôs fizerem um arremedo do boneco?
- Não pensei nisso. Mas acho que não vai acontecer. (C.M.)
Fonte: Caderno B do Jornal do Brasil

2 comentários:

Saramar disse...

Não aguentei essa Luiz. Clonei lá no meu blog, com indicação para o seu.

Beijos
Saramar

spersivo disse...

Luiz,
Você como sempre é um craque em "achados". Tanto a matéria do boteco, como esta e do Villas embaixo são dignas de um notável editor. Fiquei contente em saber do seu curso, mas um pouco triste porque vai implicar numa ausência mais prolongada dos posts do Natu. C'est la vie! Rapaz no meu Jornal Diz Persivo aquela parte dos links desceu. Já tentei de tudo e não sei o que é. Você que é um expert, quando não sabe xereta, sabe me dizer como conserto? Silvio