26 de fevereiro de 2006

Li, gostei e divulguei.

"O violento carnaval do Rio de Janeiro
Áurea Alves & Fernando Toledo

O vento impelia as nuvens à dispersão – o Sábado de Carnaval amanhecera nublado. Começamos a descer as alamedas da Lapa, identificando, pelas esquinas das Ruas Riachuelo e Mem de Sá, grupos de pessoas animadamente prontas em vestes com a indumentária obrigatória desse dia: às nove da manhã, camisetas, saias, vestidos, shorts (muitos deles), ostentavam o branco e as bolas pretas. Atingindo a Rua Evaristo da Veiga, grupos fantasiados: eram todos amigos – de algum lugar; de algum motivo; de alguma data: e todos diziam estar presentes. Na calçada em frente, mesas umbilicalmente ligadas aos pequenos bares estavam repletas daqueles foliões, fantasiados e brindando à primeira ou à quinta cerveja. Estavam presentes e ali ficariam até o final do dia. Seguindo o caminho, passamos pela esquina com a Rua das Marrecas, cujo nome sempre nos incita à curiosidade quanto a sua origem. Rapidamente prosseguimos até atingirmos a Rua Alcindo Guanabara:
– Vamos dar uma passadinha no Carlitos, é inevitável não encontrar alguém – ponderou Fernando. De fato, embora se ouvisse o som do trombone e de outros metais, grande multidão concentrava-se ali, à espera do chope naquele dia meio gelado, servido por Saldanha, o mais lépido garçom do Carlitos.
Nada de mesas: todos em pé, como o senhor e senhora Moacyr Luz. Destes ouvimos comentários sobre um certo advogado paulista ligeiramente abdominiforme vestido de sereia.
“De sereia, não, era a Cuca”, declarou, praticamente em Juízo, como se sobre Bíblia sua mão estivesse, a advogada Cris, escudada pelo Dr. Barbosa, exímio rábula carioca.
Desfile de bloco, cordão ou banda sempre tem isso: o encontro de amigos. Sem eles não há graça, nem a principal característica do carioca: porque há que se preservar o bom humor, aquele que, durante o bloco, nos permite refletir sobre questões filosóficas que envolvem a Humanidade – afinal, foi ali que nasceu a idéia de se criar o Grêmio Recreativo Escola de Samba Unidos de Frankfurt. Um deboche intelectualmente óbvio, mas com um típico acento de Samba de Mestrado Doido.
Enfim, encontrávamos os amigos que nos levaram a perseguir o Cordão do Bola Preta. Fomos andando, buscando identificar, entre o brouhaha babélico, o caminhão que, com a música, embalava animadamente a turba agradecida. Chegamos à frente ao prédio do Ministério da Fazenda e vimos o cordão passar, aliviados – pois tínhamos o medo bem humorado de nos perder de umas 40 mil pessoas.
Saídos de lá, levamos nosso Dr. Barbosa – secundado pela esposa e escudeira – , muitos amigos (em especial o mineiro Yasser) para a cerimônia de devorar, entre preces rituais, um delicioso e quentíssimo caldo de cabrito, servido dentro de uma broa portuguesa.
A partir daí, o Rio de Janeiro se desmonta mais em Rio, com todas as opções possíveis: nada muito especial, nada de carros de som iluminados. Sem frescuras.
“Vamos para um bloco em que vai sair um velho comunista, lá em Copacabana”, sugeriu Barbosa.
O sábado terminara sob chuva, batuque, e, findo o desfile, dado o abraço no velho comunista, separamo-nos. Nenhum sinal de violência. Embora as pernas doessem, o dia seguinte ensolarado nos impeliu à feira, para as compras domésticas. Ao meio-dia, tropeçamos numa banda. Esta patrocinada por um político do Bairro de Fátima. As mesmas mulheres maduras bronzeadas; as crianças do bairro; jovens; homens animados, como animado estava um senhor em cadeira de rodas, que parecia ter saído do leito exatamente para aquele momento. Como é simples a alegria e como é fácil conviver com os alegres. A alegria é simples, mas perfeita. Munidos dessa impressão, fomos ao almoço, preparando-nos para a noite. Nosso caminho foi o mesmo, e atenção foi dirigida para o palanque erguido no Largo da Lapa. Centenas de barracas, montadas desde antes, acolheriam mais tarde o público que assistiria aos shows. No palco, um homem, vestido de mulher, apresentava o show de um grupo de música, e, “animando" o público, avisava que logo, logo, haveria pagode, forró e até (com ênfase no até), samba. No Carnaval, e no Rio... – evidentemente, uma das criações mutantes de César, o Maia, como diria Fausto Wolff.
E continuamos, como Dedalus e Bloom...
Pelas escadarias do Teatro Municipal pudemos ver um grupo de jovens, muitos, vestidos com belas fantasias de "clóvis”. Típicos do subúrbio, especialmente da Zona Oeste, vestem-se como palhaços elegantes, segurando um bastão com uma corda à qual se prendia uma bola de borracha. Suas incursões em meio ao povo, em fila indiana que ora ondulava, eram marcadas pelas batidas de bolas no chão. Embora pouco sorrissem – a tática do palhaço – eram ordeiros e brincavam. Era impossível identificar alguém não fantasiado: a menina de uns 3 anos,com vestido de onça; os homens com fantasias de índios: perucas negras, traços nos rostos, feitas por esparadrapos brancos, tangas de plástico, roupas com franja. Nas cores preto, vermelho e branco, bem à moda apache, iriam, por certo, sair no Cacique de Ramos. Mais pessoas em cadeiras de rodas; carrinhos com bebês fantasiados. A família carioca estava ali, ao lado de turistas do Brasil e do mundo inteiro. O desfile de blocos possui um caráter bastante democrático: há o carro abre-alas, muito simples; o carro de som; um grupo pequeno de pessoas fantasiadas com as cores do bloco – grupo normalmente isolado do restante da multidão de um modo não acintoso. Atrás do bloco seguem naturalmente todos os demais foliões, que percorrem a passarela indiscriminadamente, na grande euforia. Não há distinção. E mais uma vez nenhum estranhamento.
É admirável como esta alma encantadora do carioca se preserva tão intacta e tão desconhecida do mundo, nesses dias de folia, em que a tristeza nem pode pensar em chegar: São os trabalhadores cariocas que saem às ruas com suas famílias, preservando a espontaneidade de se sambar. Não, leitores, não encontramos violência. Encontramos gente alegre – humilde ou rica – , gente cuja imagem não condiz com aquela veiculada pela televisão: garotas bonitas que trabalham duro; homens fortes que vêm da estiva ou das fábricas, ou mesmo dos barracões das escolas. Bem carioca, sim. Nesse meio não há crueldade, desconforto ou violência. É o que o Rio prazerosamente oferece àqueles que não sabem como é o seu Carnaval.

P.S.: Este artigo é dedicado à Velha Guarda da Portela (por provar, definitivamente, que desfile é uma coisa e sambista é outra) e ao jornalista Arthur Rocha, falecido no dia 13 de fevereiro último, grande conhecedor de Música Brasileira e amigo pessoal dos editores desta coluna. Valeu, Arthur. Foi divertido enquanto durou."
Revista Musical Brasileira


É um lado desconhecida da festa. Salve o Carnaval Carioca!

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